"Renoir em foco": como foi?

"Hoje em dia, é difícil encontrar alguém que não se encante pelos impressionistas, esses gênios que mudaram tudo, que nos ensinaram a ver a vida e a arte de outro modo."

ARTIGOS

George Lucas Casagrande

                                       “A dor passa, a beleza fica." - Auguste Renoir

No mês de maio, realizei o curso Renoir em Foco, promovido presencialmente pelo MASP. Foram quatro quartas-feiras incríveis, uma verdadeira maratona artística na correria da semana. Bastava entrar no centro da cidade que eu já era tomado por aquela energia vibrante que só São Paulo tem, e esse espírito urbano foi um combustível a mais para falar sobre Renoir. Sem dúvida, essas noites de outono vão ficar na minha memória, e por esse motivo resolvi falar um pouco sobre o curso.

Hoje em dia, é difícil encontrar alguém que não se encante pelos impressionistas, esses gênios que mudaram tudo, que nos ensinaram a ver a vida e a arte de outro modo. O curso, conduzido com maestria por Juliana Guide, foi uma verdadeira imersão no universo de Pierre-Auguste Renoir, esse gigante da pintura francesa do século XIX. Logo de inicio, ela nos levou até Limoges, onde Renoir nasceu em 1841, a cidade da porcelana fina, e, de lá, seguimos com ele rumo a Paris e à história, em 1844. E não era qualquer Paris: era uma cidade em convulsão, prestes a passar por uma reforma urbanística brutal e transformadora. Era uma cidade redesenhada por Haussmann, com bulevares largos, luzes a gás, uma nova ordem que iria influenciar grande parte do mundo, inclusive o Rio de Janeiro.

Depois, mergulhamos no início da trajetória artística de Renoir, que, como tantos,  começou copiando os mestres no Louvre. Mas logo ele buscava mais, e foi no ateliê de Charles Gleyre que conheceu Monet, Sisley e Bazille. As pessoas mal poderiam imaginar que ali surgiriam grandes nomes que entrariam para a história: ali foi um ambiente fecundo de troca de ideias, debates, descobertas. Era um tempo em que a Academia Francesa ainda decidia o que era arte “de verdade” e o que era... descartável. Mas aí veio 1863 – considerado um marco na história da arte. E, com ele, a explosão: o Salão dos Recusados, criado por ordem do imperador Napoleão III, após uma avalanche de protestos de artistas rejeitados pelo tradicional Salão de Paris. Esse novo espaço foi aberto ao público para que cada um julgasse com os próprios olhos aquilo que a Academia havia desprezado. Foi nesse ambiente alternativo e provocador que artistas como Renoir encontraram liberdade, ousaram, desafiaram as regras e abriram caminho para a arte moderna.

Em seguida, Juliana Guide compartilhou conosco um dos primeiros grandes momentos de reconhecimento de Renoir: a aceitação da obra Esmeralda, inspirada na personagem de O Corcunda de Notre-Dame. E aqui veio outro ponto de tensão: a nudez feminina, presente em tantas de suas obras, ainda causava escândalo. Renoir abordava o corpo com luz, cor, doçura. Sua sensualidade tinha algo de divino, era sublime, etérea. Não dava para voltar atrás: os artistas rejeitados começaram a ganhar seu próprio espaço para expor. Ganhavam visibilidade. Causavam polêmica. Criavam uma nova estética, livre e pulsante.

Logo depois desse contexto, analisamos La Grenouillère (1869), com seus reflexos cintilantes na água, brilhos fugidios, cores que vibram como se respirassem. Oras, existe algo mais impressionista do que isso? O instante capturado. O momento suspenso. Nada de formas perfeitas ou composições rígidas, Renoir queria o brilho fugaz da vida, o movimento que escapa aos olhos distraídos. Suas pinceladas, soltas e velozes, quase dançam sobre a tela: vivas, pulsantes, carregadas de emoção. Uma paleta ensolarada, sempre em fluxo. Uma visão do mundo em constante transformação, tudo isso se tornaria legado e arrebateria corações ao redor do planeta até os dias de hoje.

Já na segunda aula do curso, mergulhamos em uma faceta menos comentada de Renoir: seu diálogo intenso com a tradição da história da arte. A princípio, pode soar contraditório pensar que um dos ícones do impressionismo, esse movimento revolucionário que rompeu com os padrões acadêmicos, mantinha vínculos com mestres antigos. Mas não há nenhuma contradição. Renoir admirava profundamente os grandes pintores do passado, e isso transparece em sua obra, sobretudo em seus nus femininos. Foi assim que começamos a aula, diante de sua representação da Vênus, um tema recorrente desde a Antiguidade, resgatado com força no Renascimento e reinterpretado por ele com certa singularidade. Renoir olhava para o passado, mas com olhos do século XIX, e esse movimento duplo, de reverência e invenção, atravessou toda a discussão da noite.

Remontando às origens do nu na história da arte, vimos que a Vênus de Cnido, esculpida por Praxíteles no século IV a.C., é considerada a primeira representação feminina nua em escala monumental. Atravessando os séculos, o tema foi reencenado por artistas como Giorgione, com sua Vênus Dormindo (c. 1510); Ticiano, com Vênus de Urbino (1538); e Rubens, que entre os séculos XVI e XVII pintou diversas versões voluptuosas do mito. No entanto, o que realmente encantava Renoir era a tradição veneziana do Renascimento, sobretudo a forma como artistas como Ticiano e Veronese trabalhavam a luz: os corpos pareciam respirar, envoltos em atmosferas quentes e douradas. Esses mestres construíam volumes com pinceladas fluidas e uso abundante de cores quentes, fugindo da rigidez das linhas. Renoir absorveu essa herança e a reinventou: suas figuras femininas também emanam calor, mas irradiam vitalidade e frescor.

Esse legado técnico também se manifesta na maneira como Renoir aplica a tinta. Assim como os venezianos, ele constrói camadas, massas pictóricas que dão corpo, profundidade e movimento às superfícies. Vimos isso nitidamente em obras como O Almoço dos Remadores (1881), onde a figura humana ocupa o centro da cena e nos conduz o olhar. Na aula, vimos o incrível processo para realizar o reflexo da taça, com suas sobreposições de tinta, nos revela a profundidade do processo criativo. Renoir parece desafiar a própria materialidade da pintura ao simular vidro, luz, tecido e carne com apenas uma sequência de toques cromáticos. E, mesmo ali, num momento de descontração entre amigos, há ecos renascentistas: a composição equilibrada, a musculatura levemente acentuada, o cuidado anatômico das figuras.

Mas talvez o mais instigante em Renoir seja justamente o fato de que ele não seguiu uma cronologia linear, tampouco se ateve a um único estilo. Suas Grandes Banhistas (1887), por exemplo, são um retorno deliberado à tradição clássica: corpos sólidos, poses escultóricas, arranjos simétricos. Já em Banhistas (1918), temos quase uma abstração sensual, em que a definição dos contornos cede lugar à fusão entre figura e fundo, como se a tela se tornasse um campo de vibração colorida. É essa liberdade, essa recusa em se deixar classificar, que torna sua obra tão rica. Renoir podia ser impressionista, clássico, barroco ou moderno, tudo no mesmo quadro, e ainda assim coerente em sua busca essencial: pintar a alegria de viver.