O adeus a um gigante da literatura
"A Festa do Bode também é um primor estrutural e narrativo. O romance é dividido em 24 capítulos sem títulos, dispostos de maneira intercalada. "
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
“A literatura não é algo que nos faça felizes, mas ajuda-nos a defendermo-nos da infelicidade.”
Foi em meados de 2015, durante uma fase em que me dedicava a explorar a literatura latino-americana, que me deparei pela primeira vez com a obra de Mario Vargas Llosa. O livro escolhido, quase por acaso, foi Travessuras da Menina Má, e a leitura marcou um antes e depois na minha relação com a ficção. Narrativa com uma pitada autobiográfica, sensual e irônica — marca registrada de Llosa, reflexo direto de sua admiração por Flaubert, tema central de outra brilhante obra do autor: A Orgia Perpétua.
Desde então, Llosa passou a habitar minha estante e meus pensamentos — como um velho amigo que, a cada novo livro, revela um estilo que admiro profundamente na literatura. Depois de me encantar com Travessuras da Menina Má, mergulhei em A Festa do Bode — leitura que me deu um verdadeiro soco no estômago. O romance, brutal e minucioso, me lançou no coração sombrio da ditadura de Rafael Trujillo, na República Dominicana, como se eu mesmo caminhasse pelas ruas vigiadas e respirasse a atmosfera da opressão daquele período. Nenhuma obra histórica ou tratado sociológico me causou tamanha angústia sensorial diante de uma ditadura. A escrita é um documento atemporal sobre as chagas do America Caribenha. É impossível sair ileso dessa leitura.
A Festa do Bode também é um primor estrutural e narrativo. O romance é dividido em 24 capítulos sem títulos, dispostos de maneira intercalada. Três núcleos principais de personagens se entrecruzam como linhas de uma narrativa caleidoscópica, e cada um deles assume, alternadamente, a condução da narrativa, dando voz às diferentes perspectivas da história. Sem dúvida, um dos marcos da literatura latino-americana que ilustra a genialidade do escritor peruano.
Se, na ficção, Vargas Llosa me conquistou pela versatilidade e pela força narrativa, em seus ensaios encontrei um pensador lúcido, incansável em sua defesa da liberdade individual. Em A Civilização do Espetáculo, sua crítica à banalização da cultura e ao empobrecimento do debate público é uma radiografia urgente para os dias de hoje, assim como Sabres e Utopias, sua coletânea de artigos e discursos políticos o qual ele se revela como alguém que acreditava na democracia com a convicção de quem a viveu, a perdeu e a defendeu. Ler Vargas Llosa era como escutar a voz de um mestre que não se acomodava, que incomodava - e que, por isso mesmo, fazia pensar. Sua ausência será sentida não apenas pelos leitores, mas por um mundo cada vez mais carente de vozes rebeldes e cultas como a sua.
"O conhecimento tem a ver com a evolução da técnica e das ciências; a cultura é algo anterior ao conhecimento, uma propensão do espírito, uma sensibilidade e um cultivo da forma, que dá sentido e orientação aos conhecimentos."
Em outra faceta igualmente marcante, foi com Dicionário Amoroso da América Latina que Vargas Llosa me ensinou a amar, com mais profundidade, este continente inquieto, vibrante e tantas vezes ferido. Página após página, ele revelava um conhecimento apaixonado e erudito sobre a história, a arte, os sabores e os traços culturais que formam nossa identidade. Ao lado de figuras como Bolívar, Borges, Gabriel Garcia Marquez e Che Guevara, desfilam também paisagens, ritmos e sentimentos - tudo costurado com a sensibilidade de quem viveu cada pedacinho da América Latina. Sua vida foi uma verdadeira odisseia: atravessou fronteiras, enfrentou censuras, experimentou o poder e também o exílio.
“Porque o romance é o território da experiência humana totalizada, da vida integral, da imperfeição. Nele se misturam o intelecto e as paixões, o conhecimento e o instinto, a sensação e a intuição, matéria desigual e poliédrica que as ideias, por si só, não bastam para expressar.”
Quando artistas do porte de Mario Vargas Llosa partem, o mundo parece perder um pouco do seu brilho, e tudo fica um pouco mais sem graça. Sua carreira foi longa, brilhante e marcada por uma inquietação criativa que jamais se rendeu ao lugar-comum. Vargas Llosa foi mais que um escritor; foi uma consciência atenta, um provocador necessário, uma presença elegante na literatura e no pensamento contemporâneo. Sua ausência, agora, nos acompanha - como uma saudade que não se dissolve, mas que se transforma em legado.
“No meu caso, a literatura é uma espécie de vingança. É algo que me dá aquilo que a vida real não me pode dar - todas as aventuras, todo o sofrimento. Todas as experiências que eu só posso viver na na imaginação, a literatura completa-as.”

