Mario Vargas Llosa mostra a essência do totalitarismo em "A festa do bode"
"A obra de Llosa é um monumental tributo às vitimas do regime trujilista, mas também é um alerta para o nosso tempo, em que as aparências e os discursos carismáticos dos monstros continuam encantando inocentes, e as ideias sobre esses regimes são geralmente vagas e superficiais, senão desdenhadas e romantizadas por alguns."
ARTIGOS
Aqueles que me acompanham sabem que Mario Vargas Llosa está entre os meus escritores prediletos. Já li diversos de seus livros, ensaios e artigos, e uma das coisas que mais admiro nele é a sua versatilidade. Além de dominar diversos gêneros, suas obras são bem divididas em diversos assuntos. Lançado no ano de 2000 pela editora Mandarim, "A festa do bode" constitui uma de suas criações mais fortes. Trata-se de uma obra em que o escritor peruano aborda o tenebroso período de Rafael Trujillo no comando da República Dominicana, assunto pouco conhecido no Brasil.
Ditador sanguinário e monomaníaco, Trujillo ficou 31 anos no poder da República Dominicana, deixando um legado de terror, perseguições e delírios de grandeza. É comum ouvirmos histórias grotescas sobre a vida de psicopatas ditadores, mas nessa obra que alterna ficção e realidade, Vargas Llosa nos consegue transmitir qual é o verdadeira essência de um regime totalitário. A minúcia em que Llosa descreve os personagens, as cenas e os diálogos são características comuns do escritor, e "A festa do bode" não fica de fora desse estilo acurado, fazendo com que ela ganhe um tom intimista e aterrorizante.
A narrativa também não é construída de modo tradicional, o escritor alterna o tempo e o espaço de forma constante, construindo a história sob três núcleos diferentes. O primeiro tem como pano de fundo a vida de Urânia Cabral, filha de um dos homens fortes do trujilismo, o senador Agustín Cabral. O tempo em que se encontra é futuro aos fatos ocorridos no período de Trujillo, apresentando uma personagem que recorda sua experiência de criança e adolescente no antigo regime. Na companhia das primas, da tia e do pai velho e doente de cama, Urânia desvela segredos e fantasmas que o fizeram se afastar e reter magoa de seu próprio pai.
O segundo ponto de vista é o do próprio Rafael Trujillo e de seu eixo. Figura temperamental e ambígua, repleta de fetiches sexuais e delírios de grandeza, Trujillo tinha tudo aquilo que comumente ditadores tiveram ao longo de suas trajetórias sangrentas. Uma família igualmente criminosa e cúmplice, um exército de puxa-sacos e submissos capazes de qualquer bizarrice para satisfazer as exigências do "generalíssimo" e claro, aqueles que souberam dissimular durante o regime e ganharam posterior fôlego político, como o controverso Joaquín Balaguer, que comandou a República Dominicana depois do trujilismo, democratizando o país.
O terceiro núcleo é o dos revolucionários do Movimento Revolucionário 14 de Julho. No eixo dos revolucionários, cada homem que planeja a morte de Trujillo possui também uma justificativa pessoal. Mas mais do que isso, eles são a única esperança de liberdade de um povo apático, incapaz de reagir diante do "emissário do mal na terra". De personalidades marcantes, porém distintas, eles são obrigados a deixar as diferenças passadas de lado e traçam um único objetivo: matar o "Bode". Qual foi o fim de homens como Antonio de la Maza, Miguel Angel, Antonio Imbert e Estrella Sadhalá?
A obra de Llosa é um monumental tributo às vitimas do regime trujilista, mas também é um alerta para o nosso tempo, em que as aparências e os discursos carismáticos dos monstros continuam encantando inocentes, e as ideias sobre esses regimes são geralmente vagas e superficiais, senão desdenhadas e romantizadas por alguns. O fato é que "A festa do Bode" é uma das reportagens literárias mais interessantes e agoniantes que li no último ano. A sensibilidade, o assombro e o ritmo veloz do texto fazem dessa obra um dos maiores marcos da literatura madura de Mario Vargas Llosa.

