Fellini celebra Roma à sua maneira, e quem agradece somos nós
"Fellini parece nos oferecer uma síntese afetiva da alma romana com suas contradições, seus ruídos, seus rituais. É simplesmente uma crônica visual, sem começo, meio ou fim."
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
O ano era 2012, e a minha empolgação algo meio juvenil pelo cinema me fazia sair por aí comprando tudo o que visse pela frente. Trabalhava próximo à Avenida Paulista, e a saudosa Livraria Cultura, junto às bancas de jornal da avenida, tornava-se um verdadeiro parque de diversões para meus anseios cinéfilos. O problema é que os DVDs originais eram bem mais caros, e o meu modesto salário não era compativel com aquela vida de colecionador. Mas a sorte, às vezes, sorri para os apaixonados: pouco tempo depois, conheci uma barraca de DVDs piratas nos arredores do Sesc Pompeia. O rapaz, sempre alerta à aproximação da GCM, oferecia apenas o que havia de mais nobre no cinema. Ali eu encontrava clássicos de todos os gostos: Ingmar Bergman, Orson Welles, Elia Kazan e até nomes mais modernos, como Tarantino e Scorsese. Quem resistiria?
No meio daquela corrida impulsiva por clássicos do mundo cult, acabei comprando dois filmes de Federico Fellini: E la nave va e Roma. Na empolgação, assisti primeiro ao que parecia mais curioso, e a experiência foi, à época, de um tédio monumental. Com isso, o segundo filme ficou esquecido por anos, encostado na estante, sem sequer um olhar de piedade de minha parte. O mais curioso e, talvez, mais irônico, é que comprei Roma achando que estava levando para casa a badalada série da HBO (que, aliás, só fui assistir quase uma década depois, e tenho um artigo sobre ela aqui no meu site). Como explicar tamanho desencontro entre expectativa e realidade? Talvez o historiador Ernst Gombrich tenha a resposta: “há motivos errados para não gostarmos de uma obra de arte”. E ele tem razão. Porque, ao contrário da impressão apressada daquele jovem espectador, Fellini não era um cineasta qualquer. Era, e continua sendo, um dos grandes mestres do cinema mundial, e isso exige dos olhos atentos um esforço que vá além do gosto imediato.
Foi apenas muitos anos depois que decidi, sem grandes expectativas, assistir a Roma de Fellini e, enfim, compreendi por que o filme é considerado uma verdadeira obra de arte. Lançado em 1972, Roma já vinha na esteira de um diretor consagrado, ou melhor dizendo, de um verdadeiro poeta do cinema. Ao revisitar sua biografia, descobrimos que Fellini iniciou sua trajetória como cartunista e jornalista satírico, o que ajuda a entender muito do espírito irônico, fantasioso e fragmentado de seus filmes. Apaixonado pela arte circense e fascinado pela figura do palhaço, ele transformou essa obsessão em linguagem cinematográfica. Não por acaso, obras como Na Estrada da Vida (1954) e Os Palhaços (1970) surgem como manifestações líricas e melancólicas sobre a vida errante e teatral dos artistas.
É justamente nesse estilo caricato e satírico que Fellini constrói seu olhar íntimo e imaginativo sobre Roma. Depois de explorar a Roma Antiga em Satyricon (1969), ele complementa sua homenagem à cidade com o filme Roma (1972), agora voltado à metrópole contemporânea e às suas múltiplas camadas. A obra foge completamente da linearidade tradicional, um gesto ousado numa época em que os diretores ainda precisavam se curvar às exigências das produtoras. Não há protagonistas, não há enredo convencional: todas as figuras se confundem, se equivalem, se dissolvem na massa urbana. Fellini parece nos oferecer uma síntese afetiva da alma romana com suas contradições, seus ruídos, seus rituais. É simplesmente uma crônica visual, sem começo, meio ou fim. Um convite para observar, espiar e bisbilhotar uma cidade em movimento, sem esperar por grandes epifanias. Afinal, não é isso também o que o cinema pode ser? Um convite para apreciar a arte pela arte.
Há em Roma uma visão nostálgica que remete, por vezes, ao encantamento do personagem de Woody Allen em Meia-Noite em Paris, aquele olhar apaixonado por um passado idealizado, carregado de charme e desilusão. Fellini, ao lado de seus anônimos caricatos, parece repetir em silêncio a todo instante: “essa Roma não é mais a mesma”. Mas a Roma da cultura teatral ainda pulsa, viva e vibrante, como na cena inicial em que a morte de Júlio César, saída das páginas de Shakespeare, explode no palco com o famoso “Até tu, Brutus?”. E o que dizer da Roma cotidiana, dos garçons que jogam o parmesão no macarrão com as mãos, sob o protesto bem-humorado dos clientes: “Você colocou pouco queijo, coloque mais!”? Ou daquela outra Roma, do catolicismo extravagante e já decadente, que surge em uma das cenas mais bizarras e geniais do filme: um desfile de moda papal com modelos de batina desfilando sobre patins. De um extremo ao outro, da crueza das ruas ao luxo risível das mitras, tudo é mostrado com um poder estético grandioso, que é marca registrada de Fellini, mas também herança de uma tradição cinematográfica italiana que soube unir beleza, crítica e imaginação.
Talvez Roma não seja a obra-prima de Fellini, e nem precise ser. Ainda assim, é um registro sublime sobre uma das maiores paixões da humanidade: a cidade de Roma. Seria um documentário ficciona ou uma crônica visual? Um novo gênero, quem sabe: o documentário satírico-poético. A verdade é que a obra escapa às classificações da indústria. E é justamente por isso que Fellini carrega com justiça o título de “poeta do cinema”. Seu olhar sensível, bem-humorado e profundamente crítico o consagra no panteão dos grandes mestres italianos e universais.

