Dom Pedro I: uma biografia para o nosso tempo

"Dom Pedro I foi, sem dúvida, um estadista marcado por contradições. Apesar dos seus defeitos e arroubos autoritários, a liberdade pulsava como essência em sua trajetória. Foi com esse espírito liberal e uma determinação quase heroica que ele ergueu o grito da independência do Brasil, um dos pontos culminantes de uma vida que mais parecia uma verdadeira odisseia."

ARTIGOS

George Lucas Casagrande

O escritor Paulo Rezutti consolidou-se como um dos mais populares biógrafos dedicados ao Brasil imperial. Sua trajetória é marcada por uma série de livros que iluminam figuras centrais da nossa história, como Domitila de Castro, a imperatriz Leopoldina e, mais recentemente, Dom Pedro II. Entre esses títulos, destaca-se a envolvente biografia de Dom Pedro I, foco deste artigo. Rezutti não apenas recompõe os passos do primeiro imperador do Brasil, mas o faz com base em vasta documentação, incluindo cartas pessoais, documentos oficiais e objetos raros, alguns até então pouco explorados por outras biografias. O resultado é uma edição rica, cheia de conteúdo, que abre a janela para os bastidores da independência e para a intimidade dos protagonistas daquele período.

Muito além de retratar apenas a vida íntima de Dom Pedro I ou de enaltecer sua figura como símbolo da independência do Brasil, Paulo Rezutti nos conduz por um panorama mais amplo, inserindo o imperador nos grandes movimentos que agitavam o Ocidente no século XIX. O palácio de Queluz, onde o jovem Pedro passou os primeiros anos de vida, já carregava em suas paredes o peso de uma longa história: fora incorporado à Coroa portuguesa após a separação entre Portugal e Espanha, no fim da chamada União Ibérica. Nesse ambiente de instabilidade política e familiar, o menino cresceu cercado por desafios, inclusive o de testemunhar a lenta e dolorosa loucura de sua avó, a rainha Maria I. Mas será que era apenas ela que enlouquecia? O mundo à volta também parecia mergulhado no caos: a Revolução Francesa havia abalado os alicerces da monarquia europeia e, posteriormente, as guerras napoleônicas redesenhariam o mapa do continente. Portugal não sairia ileso. Tudo isso formaria o pano de fundo da vida de Pedro, moldando um jovem herdeiro cujas decisões, anos depois, seriam fundamentais para a independência do Brasil.

Foi nesse cenário instável e ameaçador que D. João, então príncipe regente, tomou as rédeas do destino da monarquia portuguesa e decidiu pela ousada transferência da corte para o Brasil, arrastando consigo ministros, nobres, criados e, claro, seu filho Pedro, ainda um menino. A travessia do Atlântico, feita às pressas em 1808, não apenas salvaria a dinastia dos Bragança de um provável colapso, mas também lançaria as bases de uma tensão irreversível entre portugueses e brasileiros. Era o início de uma nova configuração política, marcada por disputas de poder, ressentimentos e interesses divergentes. O diário de Euzébio Gomes, testemunha ocular daquela partida histórica, nos dá a dimensão do caos vivido no cais de Belém: “Embarcou a família Real (...) entre lágrimas e suspiros gerais.” Caixas empilhadas, pessoas desesperadas, malas abandonadas e um sentimento difuso de urgência, tudo isso prenunciava que algo novo e irreversível estava por vir. Ora, como ignorar o simbolismo desse embarque feito às pressas? Ali começava, sem que muitos percebessem, o lento processo que levaria Pedro a erguer a espada da independência anos depois.

Deixando para trás os dias agitados da fuga de Portugal, Dom Pedro encontrou no Brasil não apenas um refúgio, mas também o espaço onde se formaria como homem e como líder. Sua educação foi cuidadosamente moldada para um príncipe. Aprendeu a ler, escrever, falar outras línguas e foi instruído nos preceitos da moral religiosa, sempre equilibrando o saber teórico com a vivência prática. Homem de ação por natureza, não dispensava atividades físicas, traço que pode ter sido estimulado por seu primeiro mentor, José Monteiro da Rocha. No Rio de Janeiro, cidade em plena efervescência após a abertura dos portos, o jovem Pedro se adaptou com surpreendente facilidade, adotando o Brasil como sua verdadeira pátria. Cresceu em meio ao calor tropical e à agitação urbana, frequentando tavernas, festas e até se metendo em enrascadas ao lado do inseparável Chalaça, companheiro de copos e confissões.

O casamento com a arquiduquesa Leopoldina da Áustria foi um marco decisivo na vida de Dom Pedro, tanto no plano político quanto pessoal. Ao lado dela, o príncipe amadureceu, enfrentou dilemas conjugais e consolidou uma imagem pública que, aos poucos, se distanciava do jovem aventureiro para dar lugar ao futuro imperador. Embora a relação tenha sido marcada por infidelidades da parte de Pedro, que não escondeu sua paixão por Domitila de Castro, a marquesa de Santos, o casal dividiu interesses e afinidades, como o amor pela música e pelas artes, além de gerarem descendentes fundamentais para a história do Brasil, entre eles o futuro imperador Pedro II. E se há críticas quanto à sua vida conjugal, no papel de pai Dom Pedro foi afetuoso e atento. Em carta à filha Maria, por exemplo, revela sua constante preocupação com a educação dos filhos: “(...) parece-me que tu não tens cuidado muito de estudares (...) não deixarei de te mostrar sempre que tenha ocasião o meu desprazer.” Não é comovente ver esse imperador, tantas vezes representado como impulsivo e passional, revelando-se um pai exigente, quase pedagógico?

Foi ao lado da esposa Leopoldina que Dom Pedro também aprendeu a manejar as complexas artimanhas da política, e, após a Revolução do Porto, que forçou o retorno de D. João a Portugal, ambos se tornaram protagonistas do destino do Brasil. Influenciado pelas ideias liberais que ganhavam força na Europa, Pedro manifestava simpatia pelos conceitos de direitos humanos, constitucionalismo e separação dos poderes. As revoluções do século XIX não apenas agitaram o continente, mas trouxeram consigo uma onda de renovação intelectual que ecoaria nas decisões do imperador. Prova disso foi o decreto que ele assinou, fundamentando a liberdade individual das “pessoas livres”, estabelecendo que ninguém poderia ser preso sem ordem judicial escrita, salvo em flagrante delito. Além disso, o texto proibia prisões secretas e assegurava que os processos deveriam ser concluídos em até 48 horas, garantindo ampla defesa ao acusado. Mais ainda, vedava o uso de correntes, algemas ou quaisquer instrumentos de tortura contra detentos ainda não julgados. Não é fascinante perceber como, em meio a um império jovem e turbulento, Dom Pedro buscava pautar seu governo nos pilares da justiça e da liberdade?

Dom Pedro I foi, sem dúvida, um estadista marcado por contradições. Apesar dos seus defeitos e arroubos autoritários, a liberdade pulsava como essência em sua trajetória. Foi com esse espírito liberal e uma determinação quase heroica que ele ergueu o grito da independência do Brasil, um dos pontos culminantes de uma vida que mais parecia uma verdadeira odisseia. Aristóteles ensinava que o herói trágico não é totalmente bom nem completamente mau, mas alguém que busca o bem e, por uma fraqueza moral, acaba contribuindo para sua própria queda. Seria Dom Pedro I esse herói? Quem pode negar que ele, como todo ser humano, conviveu com seus vícios e pecados, mas também foi um filho devotado, pai amoroso e irmão presente? Essa análise íntima, trazida pela narrativa de Rezutti, é um convite a resgatar o amor pela história e pelo Brasil, especialmente num tempo em que muitos desconhecem seus próprios feitos. Essa biografia não é apenas uma obra rica e detalhada, é uma leitura essencial para quem deseja compreender, de forma profunda e envolvente, a complexa figura do libertador e os caminhos da nossa nação.

Paulo Rezzutti narra a vida de Pedro I em biografia cativante