Desafios e perspectivas da escola pública: uma reflexão
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ARTIGOS
5/2/20257 min read
No século XXI, a educação é o assunto predileto de organismos e agências internacionais como UNESCO, UNICEF, IEA, Banco Mundial, entre outros. No Brasil, ano após ano, bilhões e bilhões de dinheiro são despejados em programas de ensino, que aparecem com destaque nas propagandas políticas de diferentes partidos. Mas o fato é que, infelizmente, nada disso tem surtido efeito para que a educação no país melhore. É evidente que ela enfrenta uma crise há décadas. A má qualidade do aprendizado, a falta de progresso nos resultados de avaliações padronizadas, a pouca importância que mais anos de estudo têm na vida dos alunos, o aumento da evasão escolar em diferentes níveis, a maior discrepância entre idade e série, entre outros problemas. Diante desse cenário, surge a pergunta: quais são as bases teóricas dessa crise educacional atual?
Desde que me formei como professor e passei a viver o mundo dela por dentro me deparei, no ensino de jovens, com uma questão crucial e delicada que parece atormentar o dia a dia escolar: a indisciplina e o desinteresse cada vez maior por parte dos alunos, fato que tem como consequência a exaustiva tentativa do sistema escolar de tornar as aulas mais atrativas. Atualmente, por exemplo, são investidos milhões em plataformas digitais de diversos tipos, numa tentativa de aliar à tecnologia, entendida como mais próxima das novas gerações, ao ensino. A tecnologia, nesse contexto, surge não apenas como uma poderosa aliada do ensino, mas também como um instrumento que, em certa medida, torna o ensino refém de suas próprias ferramentas - sobretudo quando se acredita que ela, isoladamente, pode solucionar problemas que são, em essência, estruturais.
A retórica do "ensino moderno": Governo de SP conseguiu piorar o que já era muito ruim investindo bilhões em plataformas educacionais. Como sempre, o Brasil copia o que há de pior na educação global.
No entanto, esse é apenas o sintoma de algo mais profundo e duradouro. Ao mesmo tempo em que surgem inúmeras tentativas de tornar o ensino mais atraente para as novas gerações, esquecemos de abordar a origem primária dessas ideias. Há décadas, as práticas pedagógicas, muitas vezes influenciadas por correntes teóricas oriundas de áreas externas ao ambiente escolar, têm priorizado a convivência e a socialização em detrimento do ensino de conteúdos.
“O mundo atual, inundado de distrações – permitidas e estimuladas, inclusive, pelas escolas –, praticamente impossibilita a aquisição de conhecimentos” - Paulo Cruz
SOCIALIZAÇÃO X APRENDIZADO - UMA CONTRADIÇÃO
Desde a década de 1960, certas abordagens metodológicas do ensino destacam a busca pela "autonomia" do aluno, com a intenção de criar um sistema educacional que supere as diferenças individuais entre eles. Posteriormente, foi introduzida uma retórica mais lúdica com forte apelo ao prazer e à leveza no processo de ensino. Essas tendências logo se integraram à tecnologia, sob a justificativa de que o aluno sabe melhor o que o agrada. Assim, o aluno deixa de aprender a partir do que lhe é ensinado por outros e passa a ser responsável por buscar sua própria informação e transformá-la em conhecimento.
Essa pedagogia centrada no aluno, na prática, acaba dependendo mais dos próprios colegas do que da matéria ou do professor. Os alunos de mesma idade tornam-se os principais agentes socializadores. Confia-se que algum aluno será capaz de resolver um problema e auxiliar os demais, promovendo um aprendizado colaborativo onde ninguém fique para trás. A proposta é que a educação se transforme em um processo de autoeducação voltado para a convivência. Ora, com a popularização da internet, a noção de autoeducação torna-se ainda mais evidente, já que o acesso ao conhecimento está, cada vez mais, ao alcance de todos.
Escritora de obras importantes sobre educação, Inger Enkivist reflete sobre as "novas pedagogias"
No entanto, a contradição dessa prática pedagógica está no fato de que o aluno se forma na escola pública em um ambiente que valoriza a socialização em detrimento de um aprendizado mais concentrado e reflexivo. Entretanto, as provas de vestibular e os testes padronizados exigem justamente o oposto: que o estudante adote uma postura focada, com metodologias de estudo rigorosas e individualizadas. Ou seja, os exames que deveriam prepará-lo para a vida adulta, para a universidade ou para concursos públicos acabam cobrando uma forma de aprendizado diferente daquela vivenciada durante sua trajetória na educação básica.
Na educação atual, os alunos são incentivados a organizar suas próprias jornadas de aprendizagem, escolhendo temas e métodos de estudo de forma livre (e superficial). Fazem parte do ensino uma nova linguagem: “professor-mediador” “autonomia”, “protagonismo”, “interacionismo”, além de palavras comuns em empresas, como “competências” e “habilidades”. Como esperar que um jovem busque conhecimento e profundidade em um mundo saturado por distrações e redes sociais voltadas ao entretenimento?
A satisfação na escola deve estar vinculada ao conteúdo: entrar numa aula e que lhe contem algo que você não sabia. Mas é preciso saber que, para entender algo novo, é necessário fazer um esforço. Além disso, é fundamental que o professor nos ensine a ler e também como nos comportar. É impossível aprender bem sem que haja ordem na sala de aula. Essa é a base principal: comportamento, leitura e avaliação pelo conhecimento - Inger Enkvist
A TEORIA DAS MÚLTIPLAS INTELIGÊNCIAS
Muitos podem me questionar: "Mas, na educação tradicional, o aluno deixa de explorar sua inteligência de forma plena." Sim, reconheço esse ponto como uma contraposição importante. A teoria das inteligências múltiplas, desenvolvida pelo psicólogo Howard Gardner na década de 1980, propõe justamente que as pessoas possuem diferentes tipos de inteligência, e não apenas uma inteligência geral. Diante disso, surge a questão: como aliar uma educação mais concentrada e estruturada com o respeito às individualidades?
Escritora de obras importantes sobre educação, Inger Enkivist reflete sobre as "novas pedagogias"
Refletindo a partir da minha experiência como professor, afirmo que há dois fatores primordiais para tornar isso possível, mesmo com a manutenção de métodos mais tradicionais. O primeiro deles é a superlotação das salas de aula. Na educação que proponho neste artigo, há espaço, sim, para práticas que valorizem as diferenças e as múltiplas formas de aprender. No entanto, nas escolas públicas, a alta quantidade de alunos por turma inviabiliza qualquer tentativa real de inovação. Essa é uma denúncia grave: enquanto se cobra a aplicação de novas teorias pedagógicas, o sistema mantém uma estrutura que impede sua concretização.
Salas lotadas, metodologias que priorizam a socialização e não preparam os alunos para a vida pública, além da constante pressão para que essas práticas sejam implementadas. O resultado? Professores exaustos e desmotivados, que não conseguem exercer plenamente seu trabalho.
A FIGURA DO PROFESSOR NOS DIAS DE HOJE
Tradicionalmente, o professor era visto como uma figura respeitada, alguém de grande conhecimento que, além de ensinar conteúdos, transmitia valores éticos aos alunos. Ou seja, o processo educativo era centrado na autoridade do professor e na valorização do saber intelectual. Hoje, o professor é uma espécie de facilitador, árbitro, e não mais alguém que domina o conteúdo a ser ensinado. Ele já não é respeitado por sua bagagem e conhecimento. Exigir esforço dos jovens era mostrar respeito com eles e acreditar em seu potencial. O ambiente escolar respeita o aluno quando há uma atmosfera que exige dele certos comportamentos e conhecimentos, quando uma aula é bem preparada e os alunos bons são motivados e premiados com mérito.
Atualmente, quando alguém destaca a importância do professor na educação, muitas vezes é acusado de tentar ressuscitar um modelo autoritário e esnobe. No entanto, isso está longe de ser o objetivo. O professor deve lembrar que não precisa ser autoritário, nem excessivamente carismático, mas sim profissional. A prática docente não deve ser exercida em busca de reconhecimento pessoal, mas com foco na formação de qualidade dos alunos.
“A educação progressista, tal como foi concebida a partir dos anos 1950, ao procurar, com razão, repensar o papel da docência, pode ter contribuído para a erosão da autoridade do professor.” Ronai Rocha
Os professores precisam cultivar uma vida intelectual própria. Devem ter tempo para ler livros, assistir filmes, viajar e contemplar o que é substancioso na vida. Para inspirar os alunos, é fundamental acumular ideias e conhecimentos. A palavra "professor" deveria remeter à imagem de alguém apaixonado por livros, ideias e temas universais, tanto do passado quanto do presente, e não de alguém vencido pela desvalorização profissional. Uma educação que o reconheça como figura central, não apenas no discurso, mas também na prática, deve recuperar seu espaço e importância.
É justamente nesse ponto que proponho uma reflexão sobre a valorização da figura do professor. O ambiente de socialização escolar pode ser enriquecedor, sem dúvida, mas é fundamental que a escola pública adote práticas em que o conteúdo ministrado pelo docente também ocupe um lugar central. Um modelo que una convivência e aprendizagem de conteúdos — funcionando, inclusive, como preparação para exames como o vestibular — começa a ressurgir no ensino público, ainda que de forma tímida e pouco sistematizada. Caso contrário, a escola corre o risco de, gradualmente, perder seu sentido. Resta a pergunta: ainda há tempo para salvar a escola pública?
REPENSAR O ENSINO: UNIR O TRADICIONAL AO NOVO
Os sistemas educativos foram criados para dar à nova geração acesso aos conhecimentos elaborados e acumulados pela sociedade, mas estaremos diante de uma nova situação se, menosprezando a herança recebida por gerações anteriores, todo o interesse for posto no “novo”. Se isso é ensinado no colégio, não surpreende que as experiências, as opiniões e as regras dos adultos careçam de importância para muitos jovens.
As metodologias, que buscam alinhar-se à nova geração continuam sendo importantes, mas acredito que a discussão sobre uma reforma no ensino se torna urgente. A formação do aluno na educação básica deve voltar a fazer sentido, e o professor deve ser um aliado em sua jornada como um ser pensante, crítico, estudioso, além de mostrar que a hierarquia, as regras e os comportamentos serão fundamentais em sua trajetória como adulto em uma sociedade livre e democrática, que depende de cidadãos cientes disso. A busca por soluções para a crise da educação pública exige, urgentemente, a conciliação entre inovação e tradição, com o professor no centro dessa transformação.
TRÊS FILMES, TRÊS VISÕES SOBRE A EDUCAÇÃO.