Crônica I Cartas de uma época que ainda não compreendi
"Já era madrugada adentro. E eu, depois de tantos anos e de todas essas pequenas historietas narradas acima, com a barba começando a embranquecer, fui pego de surpresa. Numa história sem respostas. Numa trama para a qual ainda não tenho explicações. As cartas anteriores pertencem a uma nostalgia já amadurecida. São versões completas e superadas de mim mesmo..."
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
“Umas coisas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder de si...” (Machado de Assis)
É no final do ano que pessoas metódicas, como eu, costumam dar uma ajeitada nas coisas. É nessa época que organizo algumas bagunças da casa, sobretudo de um lugar específico. Trata-se de um espaço discreto, mas carregado de significado e nostalgia. Ali se acumulam papéis de todo tipo: documentos, fotos impressas, bilhetes, cartas, cartões de aniversário e de Natal, postais vindos das mais variadas épocas da minha vida. Todos organizados como uma espécie de arquivo (quase) morto. Nasci na década de 90 e talvez pertença à última geração que ainda cultiva esse tipo de hábito.
Quase morto porque, em raros momentos, tomo os cartões mais antigos e os releio com calma, em um estado deliberado de reflexão. Neste ano, fiz isso. Esse gesto, somado à melancolia típica do fim de ano, basta para que eu me veja pensando na efemeridade da vida e dos vínculos. Entre os cartões, surgem mensagens de pessoas com quem já não falo nem vejo há muitos anos; outras, sequer mantenho contato. Antigos relacionamentos, ex-namoradas, amigos de outras fases, familiares, colegas de trabalho, entre tantos outros.
Ao reler esses textos, sou tomado por um misto de sentimentos nostálgicos. Alguns me provocam boas risadas. Outros despertam saudade. Mas uma saudade sem desejo de retorno. Há ainda aqueles que despertam algo inexplicável e indefinível. Enfim, trata-se de um costume solitário e íntimo, que me conduz a uma espécie de fluxo de consciência e me leva a refletir sobre a formação do meu eu e sobre as pessoas que passaram pela minha vida. Entre chegadas e partidas, havemos de concordar, a vida se impõe de forma tirânica e inegociável. Damos boas-vindas e nos despedimos o tempo todo. Muitas vezes até sem perceber, sem nos dar conta das mudanças.
Neste ano, fiquei curioso ao pensar na forma como me enxergavam alguns anos atrás. A imagem que certas pessoas tinham de mim naquele instante. Naquele período específico da minha vida. Isso me causa um certo espanto, uma surpresa. Há muitos e muitos anos, uma ex-namorada, numa carta longa, calorosa e cuidadosamente escrita, dizia:
“Amor, às vezes a gente só precisa de uma inspiração, uma pequena epifania. A rotina, a correria, os problemas acabam desviando a atenção de algumas coisas importantes. De ontem para hoje eu sonhei com você, como quase nunca acontece, e daí me veio um medo de te perder. Caiu a ficha do quanto você é importante pra mim e do quanto te amo, mas deixo de expressar.” (2012)
Logo eu. Que, naquela época, pouco expressava meus sentimentos. Ou, quando o fazia, era de maneira atabalhoada, quase rude. Sim, eu me sentia bruto. O rosto quase sempre fechado, tomado por uma sensação estranha e persistente, uma sensação de não ser importante pra ninguém. Não gostava muito da vida naquela época. Carregava uma vontade difusa de mudar, um desejo sem direção clara. Perdido em mim mesmo e já com vinte e poucos anos. Cobrava-me por não ter ainda uma formação superior e observava, à minha volta, todos prosperarem. Construírem carreiras. Formarem famílias. E eu ali. Como um pêndulo, oscilando e sem conseguir saber do próprio rumo.
A carta seguia:
“Admiro como você é com a sua família. Admiro o modo como cuida de mim, sua simplicidade e sua sensibilidade. Tá aí, você é um homem sensível.” (2012)
Como ela pôde me enxergar como um alicerce justamente naquele ano em que eu me sentia tão frágil? Inseguro. Temeroso diante do futuro. Tão jovem e tão inexperiente nas coisas do mundo. Cheio de dúvidas. Com a sensação persistente de estar sempre em débito com a família, de não ser um exemplo de filho. Eu fumava bastante e bebia demais, e as fotos comprovam isso, pois eu parecia sempre inchado, com o rosto bem redondo, irreconhecível hoje. Teria eu subestimado a força da minha própria juventude? Talvez. Também não me lembro de ter sido um homem sensível naquele momento. Tampouco de ter sido especialmente cuidadoso com ela. Ou até comigo mesmo.
Lembro-me, isso sim, de um episódio quase cômico. Quando a presenteei, na minha ingenuidade e parca bagagem cultural, com um livro de Paulo Coelho. Ela ficou magoada. Meio constrangida. E eu, meio sem jeito. Sem entender o motivo.
Não pesquisei. Não perguntei. Não me dei ao trabalho de compreender o que aquela leitora ávida gostava de ler. Logo um livro, um objeto tão importante nos dias de hoje para mim. Ignorei sua sensibilidade. Não tive a perspicácia de compreender seu gosto, adentrar em seu íntimo, no íntimo de uma pessoa tão culta. Qual era, afinal, a versão de mim naquele instante? Quem era o Lucas que ela via, e que eu mesmo não conseguia reconhecer?
Essas palavras. Que surpresa meio boba. Peguei-me, na madrugada de Natal (dia 25), um pouco sem jeito. Meio envergonhado por dentro. Dei um riso curto, quase como um soluço. O tempo tratou de colocar as coisas em seus devidos lugares. Sei que aquela pessoa, tantos anos depois, sequer se importaria com estas linhas escritas por ela. Talvez nem as reconhecesse. O medo de me perder passou. A vida seguiu seu inevitável curso, rígido e implacável. Sei, também, que colecionamos lembranças coléricas, ásperas e tristes. E, no momento em que elas vieram à mente, ao mesmo tempo ouvi um estouro de fogos na rua e segui na minha arrumação. Fechei a carta. Devolvi-a delicadamente à pasta.
Logo em seguida, peguei um cartão de muitos anos depois. Uma lembrança bem diferente. Quase o oposto da primeira versão de mim. Naquela época, já universitário, e por ironia do destino um estudante da faculdade de Letras, eu estava cheio de mim, sentia-me bonito, seguro. Carregava uma empáfia discreta, alimentada pelos livros que começava a ler e pela sensação inédita de pertencimento ao universo das humanidades. Pegava o metrô rumo, literalmente, à liberdade. Circulava por uma faculdade gigantesca. Viva. Frenética. Era, enfim, a minha vez.
O cartão de aniversário era curto, mas caloroso. Típico daquilo que foi: um namoro de verão. Leve. Intenso. Marcado por uma certa vaidade masculina por conta da diferença de idade em relação à personagem daquela história, que tinha dezoito anos. O cartão dizia:
“Hoje quero lhe agradecer por me dar tanto carinho e amor. Te amo! Obrigado por existir!” (2018)
Minha humilde e anônima existência foi celebrada. Logo eu. Cheio de anseios cafajestes em meio àquele universo de mulheres do prédio de Letras. Ia para a faculdade contando as moedas. Com o dinheiro exato da condução. E quase nada além disso. Conseguia pagar apenas um refrigerante. Restava-me fazer pequenas gracinhas e cócegas na biblioteca, ou declamar alguns poemas propostos pelo professor. Ajudar, como podia, na execução dos nossos trabalhos em dupla. Era pouco, mas, pelo visto, valeu a pena: uma existência cheia de altos e baixos, nobremente celebrada.
No mesmo instante em que a chuva começou, me encorajei e peguei, para juntar às outras lembranças, um postal que ainda estava sobre a estante, junto de umas fotos que tirei recentemente do mural. Talvez por isso mesmo ali, ainda à vista. Não era um postal de aniversário, nem de Dia dos Namorados. Ele dizia o seguinte:
"Lucas,
Que você alce voos cada vez mais altos. Estarei sempre na torcida!
Beijos, [...]" (2025)
O curioso é que a despedida não aconteceu ali. Ainda fomos felizes por um tempo. Ainda vivemos, na minha concepção, um último e maravilhoso idílio. A despedida veio dois meses depois. Meio amarga. Feita pelas mesmas mãos lindas e jeitosas da pessoa citada. Mas agora mediada pela frieza das teclas do WhatsApp, e não pela letra redondinha do postal.
Já era madrugada adentro. E eu, depois de tantos anos e de todas essas pequenas historietas narradas acima, com a barba começando a embranquecer, fui pego de surpresa. Numa história sem respostas. Numa trama para a qual ainda não tenho explicações. As cartas anteriores pertencem a uma nostalgia já amadurecida. São versões completas e superadas de mim mesmo. Esta, não. Esta ainda provoca perguntas. Provoca uma fisgada no peito. Provoca certa revolta contra o destino.
Criaturinha orgulhosa, por que resolveu ser fiel ao próprio nome, criou asas e voou, indo embora como uma borboleta? Por que, cheia de empáfia, me privou, justamente nas festas de fim de ano, da sua deliciosa e habitual gargalhada? Da sua personalidade tão única e do seu cheiro inconfundível? Por que bateu os pequenos pés, se encheu de si e me condenou a embriagar-me de todas as bebidas, e não mais do seu amor, do seu carinho, do seu jeito meio travesso?
E logo eu, que depois de tantas aventuras, depois de trinta e quatro temporadas nessa vida, pensei que sabia das coisas. Depois de tantos anos, de tantos livros, de tantos estudos, pensei que tinha todas as respostas. Porém, me pego no avesso do meu desejo, com muito mais perguntas. Com muito mais indagações.
Juntei o postal e as fotos. E, de semblante fechado, quase a contragosto, ouvindo os trovejos da chuva pela janela, guardei os objetos junto ao plástico da pasta. Sim, não gostaria que esse item fizesse parte dessa coleção. Não gostaria que aquela letra de professora, aquele postal tão bem feito, tivesse ganhado vida. Não queria que esse cartão tivesse existido, simplesmente. Já era hora de dormir. Guardei tudo rapidamente na pasta, antes que o pensamento vagasse. Ajeitei o lençol e abracei o travesseiro, meu maior e muitas vezes único conselheiro em diversos momentos desse ano que está prestes a acabar.
Talvez, daqui a muitos anos, num mesmo Natal de madrugada chuvosa, eu tenha novamente em mãos todas essas cartas. E consiga responder a certas coisas de um modo diferente. Talvez eu enxergue versões de mim mesmo que não consegui compreender in loco. Talvez, então, eu tenha alguma noção mais concreta desse episódio da minha vida.
Ou talvez os planos de Deus sejam outros. E eu nem esteja mais aqui para buscar respostas. Talvez essa tarefa fique para outros. Para quem, um dia, encontre, além desses documentos, muitas outras fotos, livros assinados, arquivos e fragmentos cheios de significados. E, a partir disso tudo, tente fazer uma síntese dessa pequena era da minha pacata vida.
Foi assim que aconteceu com os filhos de Francesca (As Pontes de Madison). Ao se depararem com as cartas antigas da mãe, descobriram uma jornada ainda desconhecida, uma face ainda oculta da personagem. E, num dos trechos iniciais, sem compreenderem plenamente tudo aquilo ainda, leram:
“Depois que abrirem o cofre de segurança, tenho certeza de que chegarão a esta carta. Eu poderia deixar que tudo morresse comigo. Mas, quanto mais velha a gente fica, mais o medo vai desaparecendo. E passa a ser cada vez mais importante que aquilo que foi vivido seja conhecido. Conhecido por todos aquilo que você foi durante esta breve passagem. Porque há algo profundamente triste em deixar esta terra sem que aqueles que você ama acima de tudo saibam, de fato, quem você foi.”

