Contra a multidão, um diário

"Quem lê, amplia o vocabulário, o repertório e a sensibilidade; quem escreve, experimenta o mundo por meio da linguagem. Cultivar ambas é manter a mente em constante afinação e o pensamento em estado de movimento."

ARTIGOS

George Lucas Casagrande

Há dias em que escrever parece um desafio enorme. A rotina nos come vivo, e até pensar com clareza se torna difícil. Vivemos tempos de ansiedade e estresse compulsivo. Nessas horas, a inspiração para a escrita desaparece. Para quem gosta de escrever, como eu, encarar o papel em branco pode parecer inútil. Ainda assim, sinto uma grande vontade de escrever, percebo que isso me faz falta. É aí que passei a utilizar a estratégia de escrever um diário. Se o cansaço dos dias não me deixa escrever artigos, resenhas ou outros tipos de texto, pego meu diário e saio escrevendo o que vem na cabeça: conto sobre meus dias, meus sentimentos, meus dilemas. No começo, manter um diário pode parece algo banal, mas com o tempo, vira um exercício de escuta e extrema expressividade. Por isso, sempre recomendo aos alunos e amigos que comecem a escrever. Um pouco por dia, com organização, já é um bom começo.

O diário, aliás, está longe de ser um gênero único ou limitado. Ele se desdobra em diversas formas, como o diário de viagens, que registra paisagens, impressões e deslocamentos internos; o diário de leitura, que coleta pensamentos e ressonâncias provocadas por obras literárias; e até registros de bordo, nos quais o cotidiano da pesquisa ou da exploração ganha mais estrutura e profundidade. Cada subgênero reforça que o diário é uma peça aberta, moldável ao estilo, à intenção e ao contexto de quem escreve. Essa flexibilidade se revela também no cotidiano: em contato com adolescentes, por exemplo, percebi que muitas meninas mantêm um “Journal”, uma variação do diário pessoal que combina textos, colagens, desenhos e fotografias, e que expressa, à sua maneira, um desejo genuíno de dar forma à própria experiência.

Explorar essas possibilidades amplia não apenas a capacidade de expressão, mas também o modo como nos relacionamos com o tempo, com a memória e com o outro. Os registros de um diário até podem lembrar o que vemos nas redes sociais: relatos do cotidiano, reflexões, desabafos. Mas, para mim, a escrita do diário precisa se afastar da lógica da aprovação externa. Ela deve ser íntima, reservada, quase como um gesto de recolhimento: o diário não busca aplausos, nem curtidas. Sem contar o poder hipnotizante das imagens nas redes, só de entrar ali, você já perde seu eu interio, já se perde no meio do rebanho.

Escrever, antes de qualquer coisa, é um gesto civilizatório, uma forma de organizar e expandir o pensamento. Desde as primeiras inscrições em cavernas, a escrita transformou a trajetória humana. Deu permanência à memória, complexidade ao raciocínio e abriu caminhos para a ciência, a filosofia, a política e a arte. O que seria da humanidade sem esse recurso que permite transmitir ideias entre gerações, questionar dogmas, formalizar descobertas e imaginar futuros? A escrita nos ensinou a pensar com mais profundidade e a refletir com mais rigor: a escrita representa um exercício de ampliação intelectual e autoconhecimento. No livro O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização, Martin Puchner diz:

"Escrever não era apenas uma alternativa aos velhos truques de memorizar palavras. A escrita é uma das maiores invenções da humanidade e por isso mesmo botou medo em ditadores que fizeram piras imensas para queimar aquilo que eles consideravam mais perigoso: os pensamentos dos outros."

Ou seja, escrever é também um ato de vingança, de questionamento. Além de tudo, estudos indicam que escrever sobre experiências pessoais pode reduzir em até 47% os níveis de estresse e ansiedade, melhorar o humor e até fortalecer o sistema imunológico, o que revela a potência terapêutica da escrita. Ao organizar pensamentos no papel, nomeamos o que sentimos e criamos distância suficiente para observar nossos próprios conflitos com mais lucidez. Mas escrever, por si só, não evolui sem sua parceira indispensável: a leitura. Ler e escrever são práticas simbióticas, uma alimenta a outra. Quem lê, amplia o vocabulário, o repertório e a sensibilidade; quem escreve, experimenta o mundo por meio da linguagem. Cultivar ambas é manter a mente em constante afinação e o pensamento em estado de movimento.

Se você quer escrever, comece por um diário. É simples, acessível e transformador,  muito mais do que parece. Num tempo frenético em que quase tudo nos distrai, escrever é uma forma de parar, pensar e voltar para si, pois como lembra Gilles Lipovetsky:

"As redes sociais não são o lugar da interioridade, mas da vitrine. Expomos tudo, menos o essencial."

O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização, Martin Puchner