Clint Eastwood canta em homenagem aos desajustados
"Uma vida como a de Hank Williams ou Jimmie Rodgers caberia perfeitamente no universo eastwoodiano. Clint Eastwood, esse autor tão peculiar, tem predileção por homens ambíguos, desajustados, que carregam traumas e contradições, que dizem o que não devem e fazem o que não podem, mas que preservam, mesmo em meio à sua solidão espiritual ou geográfica, uma moral própria, interior, descoberta apenas no percurso da vida."
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
“Os temas profundamente humanistas e espiritualmente cativantes de inclusão, arrependimento e renascimento permeiam todos os roteiros que Eastwood escolheu dirigir.” (Sara Anson Vaux, A visão ética de Clint Eastwood)
Recentemente, batendo papo com um amigo sobre rock, mencionei um livro bem legal da minha estante: As raízes do Rock, do escritor Florent Mazzoleni. A partir dali, começamos a falar sobre a riqueza de estilos que moldou o movimento, como, por exemplo, o blues, o country, o gospel, o folk e tantos outros. No dia seguinte, já em casa, enquanto manuseava pela quinquagésima vez o rascunho do livro de Clint que estou traduzindo, me veio à cabeça a figura de dois homens em particular: Hank Williams e Jimmie Rodgers. A princípio, parece uma conexão improvável, mas há muitas coisas que ligam essas três figuras. Clint, afinal, tem entre seus filmes menos conhecidos uma obra em homenagem à figura do cantor country, o “honky-tonk”, fortemente inspirada nas vidas dessas duas estrelas da música americana.
Hank Williams, esse ícone do Alabama, viveu uma história intensa e meteórica. Fundou, quase sem perceber, a base da música popular americana ao expor suas emoções com uma voz inconfundível. Aprendeu a tocar guitarra com um músico negro que costumava ouvir nas escadarias de uma farmácia, Rufe “Tee Tot” Payne, e logo ganhou projeção em todo o sul dos Estados Unidos. Em 1949, já era atração do prestigiado Grand Ole Opry, onde gravou The Funeral, uma das raras canções country a evocar a morte de um homem negro. Revolucionário, melancólico e fugaz, Hank Williams morreu cedo demais, aos 29 anos, consumido por álcool, anfetaminas e solidão.
Jimmie Rodgers, por sua vez, começou a cantar cedo, enquanto trabalhava como mecânico nos trens que cruzavam o sul. Aos 27 anos, contraiu tuberculose, e a doença determinou o rumo de sua breve existência. Jovem, abandonou os trilhos para seguir a estrada da música, integrou uma trupe itinerante e depois partiu para sua carreira solo. Inspirado pelas paisagens que atravessava, como lagos, colinas, vilarejos e cidades, escreveu canções que falavam da América e das transformações de seu tempo. Foi um dos primeiros a misturar country com jazz, gospel e blues, unindo tradições brancas e negras em uma síntese que ainda não levava o nome de rock’n’roll. Morreu em 1932, dois dias após sua última gravação, Years Ago, deixando um legado que perdura até hoje.
Uma vida como a de Hank Williams ou Jimmie Rodgers caberia perfeitamente no universo eastwoodiano. Clint Eastwood, esse autor tão peculiar, tem predileção por homens ambíguos, desajustados, que carregam traumas e contradições, que dizem o que não devem e fazem o que não podem, mas que preservam, mesmo em meio à sua solidão espiritual ou geográfica, uma moral própria, interior, descoberta apenas no percurso da vida. O homem de Eastwood age segundo uma ética que não lhe é imposta de fora, mas que brota de sua experiência e consciência como sujeito no mundo. Ora, esses dois cantores, essas estrelas breves e ardentes, parecem feitos sob medida para esse universo moral e existencial.
“É possível que Eastwood tenha se inspirado em suas próprias memórias, de alguém que viveu à margem da sociedade americana tradicional, para construir essas diversas comunidades, dotando seus habitantes de personalidades distintas, peculiaridades e histórias de fundo. Tanto na biografia de Clint Eastwood, escrita por Richard Schickel, quanto nas entrevistas conduzidas por Robert E. Kapsis e Kathie Coblentz, conhecemos a trajetória de um jovem, sua esposa e seus dois filhos, acomodados no banco traseiro de um Pontiac, vagando pela costa do Pacífico em busca de trabalho para sustentar a família durante os difíceis anos da Grande Depressão.” (Sara Anson Vaux, A visão ética de Clint Eastwood)
Honkytonk Man, traduzido no Brasil como A Última Canção, é, por isso, um filme eastwoodiano por excelência e, talvez, um dos mais injustamente esquecidos. É também uma homenagem delicada e comovente à música country e a seus intérpretes errantes. Assim como faria depois em Bird, com o jazz, Eastwood revela aqui sua profunda ligação com as formas musicais que moldaram sua vida e sua obra. É também um filme autobiográfico, feito por alguém que, junto de sua família, viveu as dores do período da Grande Depressão e saía viajando muito, inclusive tocando em grupos itinerantes de estrada. Quem conhece Clint Eastwood sabe que ele é compositor e também cantava em algumas ocasiões. Tocou piano desde a juventude, chegando a se apresentar em bares de Oakland nos anos 1940, além de compor e dirigir trilhas sonoras de filmes que refletem esse seu interesse pela música.
Portanto, A Última Canção (Honkytonk Man) é um filme nostálgico, feito com muito sentimento. Baseado no romance de Clancy Carlile, o enredo acompanha Red Stovall (Clint Eastwood), um cantor country de Oklahoma que, doente de tuberculose, percorre as estradas em busca de seu último sonho: gravar um disco. A história é narrada por seu sobrinho de 14 anos, Whit (Kyle Eastwood), cuja relação com o tio oscila entre a admiração e o aprendizado para a vida. Em uma de suas grandes atuações na carreira, o filme constrói um protagonista trágico, meio Hank Williams, meio Jimmie Rodgers, ou todos aqueles que saíam por aí pelas estradas, compondo e lutando contra os tempos de crise, contra o peso da própria alma. Red encarna o arquétipo do artista autodestrutivo e representa a frágil humanidade que Clint Eastwood sempre buscou compreender em seus filmes.
“Eastwood constrói narrativas de jornadas intermináveis pela magnífica paisagem que vai do Sul dos Estados Unidos ao Extremo Oeste, trajetórias percorridas por desbravadores, escravos (ou seus descendentes) que avançaram para o oeste ou para o sul após a Guerra Civil, ou ainda por aqueles que migraram às cidades em busca de identidade ou paz.” (Sara Anson Vaux, A visão ética de Clint Eastwood)
Red, segundo o próprio diretor, é um homem covarde, que foge de seus desejos e simboliza o fracasso que poderia ter sido o de Eastwood. A narrativa tem boa dose de humor também, enquanto a dupla cai na estrada por cidades repletas de personagens marginais, ladrões de galinha, jogadores e prostitutas, compondo uma América plural e enérgica. Quando Red canta, com voz cansada de um tuberculoso à beira da morte, o filme cumpre seu papel em eternizar mais uma vez o cinema de Clint e a figura desse tipo de artista americano.
Quando revi o filme este ano, percebi o primor estético que havia deixado escapar da primeira vez. As paisagens, tão típicas do cinema de Eastwood, são de uma imponência majestosa. A fotografia de Bruce Surtees, colaborador frequente do diretor, é marcada por tons quentes, terrosos e suaves, que traduzem o ambiente árido e nostálgico do interior americano. As estradas de terra, as pequenas fazendas, os horizontes longos, tudo evoca a solidão e a passagem do tempo, temas centrais na filmografia de Eastwood. Os interiores cheios de sombras, outra marca simbólica comum em seu estilo, também estão ali para refletir o afeto dos personagens.
Honkytonk Man presta, assim, uma homenagem aos cantores errantes e desenraizados que transformaram suas dores em canções e que, em suas jornadas, nos ajudaram a compreender uma época e uma região, mas, acima de tudo, a compreender também algo essencial sobre a própria condição humana.
“Embora a análise detalhada de Vaux esteja fundamentada em estudos bíblicos e éticos contemporâneos, sua linguagem é acessível a todos os leitores. Suas interpretações revelam a preocupação de Eastwood com o estado da alma americana, destacando sua paixão pela justiça e pela bondade para com os oprimidos e perseguidos, sua busca pela transformação da violência em reconciliação e paz, e seu compromisso com a dignidade humana universal. Embora Vaux não afirme que Eastwood seja um diretor conscientemente religioso, ela sugere que sua obra reflete uma dádiva universal de Deus, proporcionando aos leitores uma compreensão mais profunda desses aspectos presentes em seus filmes.” (Robert Jewett, A visão ética de Clint Eastwood)
