As mulheres de Shakespeare: dramaturgo inglês adentrou no universo feminino com criatividade e complexidade psicológica
"Se nas mãos de artistas talentosos a figura feminina já não ocupa um papel secundário, quando falamos de Shakespeare, o grande arquiteto do cânone ocidental, ela ganha ainda mais relevância. O bardo inglês, mestre das múltiplas personalidades, nos presenteia com uma galeria de mulheres complexas, inteligentes, destemidas, irônicas e até mesmo assustadoras."
ARTIGOS
O universo feminino sempre foi objeto de fascínio para escritores e cineastas ao longo da história da arte. Explorar o mundo psicológico e social da mulher é um recurso que enriquece profundamente a criação artística, abrindo caminho para riquíssimas narrativas. Flaubert, com seu meticuloso apego aos detalhes, criou em Madame Bovary uma personagem que transcende as fronteiras da própria ficção, tornando-se figura de incontáveis estudos culturais e psicanalíticos. É quando a personagem “sai” da obra e ganha quase que uma vida própria. No cinema contemporâneo, a sensibilidade de Sofia Coppola ao retratar figuras femininas também merece destaque. Em Maria Antonieta, por exemplo, a diretora, ao lado de Kirsten Dunst, constrói um olhar íntimo sobre a rainha, onde seus desejos são abordados à luz da modernidade. É aquilo que teóricos chamam de female gaze, ou seja, uma perspectiva narrativa que prioriza a subjetividade da mulher, seus afetos, inquietações e desejos, sem reduzi-la a objeto do olhar masculino.
Se nas mãos de artistas talentosos a figura feminina já não ocupa um papel secundário, quando falamos de Shakespeare, o grande arquiteto do cânone ocidental, ela ganha ainda mais relevância. O bardo inglês, mestre das múltiplas personalidades, nos presenteia com uma galeria de mulheres complexas, inteligentes, destemidas, irônicas e até mesmo assustadoras. Impressiona pensar que um homem de vida discreta, que se casou jovem com Anne Hathaway e permaneceu com ela até o fim, tenha sido capaz de conceber tamanha diversidade de figuras femininas. Em sua época, as mulheres eram proibidas de atuar nos palcos, e suas personagens eram interpretadas por garotos, fato que torna ainda mais extraordinário o grau de profundidade e autenticidade com que essas mulheres foram escritas. Como um homem, de certo modo, tão limitado pelo seu tempo conseguiu dar voz a tantas personagens inesquecíveis? A resposta talvez resida em seu raro poder de observação e empatia. O fato é que as mulheres em Shakespeare não são apenas importantes, mas motores centrais de suas histórias.
Uma das figuras mais comentadas da obra shakespeariana é Catarina, da comédia A Megera Domada. Irônica, impetuosa e dona de uma língua afiada, ela se recusa, no início, a aceitar o casamento com Petruchio, que insiste em desposá-la apesar de sua fama de difícil. O embate entre os dois é carregado de humor, tensão e disputas verbais memoráveis. Contudo, o desfecho da peça ainda hoje provoca debates acalorados. Catarina, aparentemente transformada, encerra a comédia com um famoso discurso de submissão, que reverbera tanto no riso quanto na inquietação do espectador:
“Tem vergonha! Desfaz essa expressão ameaçadora e não lança olhares desdenhosos para ferir teu senhor, teu rei, teu soberano. Isso corrói tua beleza, como a geada queima o verde prado, destrói tua reputação como o redemoinho os botões em flor; e não é nem sensato nem gracioso. A mulher irritada é uma fonte turva, enlameada, desagradável de aspecto, ausente de beleza. E enquanto está assim não há ninguém, por mais seco e sedento, que toque os lábios nela, que lhe beba uma gota. O marido é teu senhor, tua vida, teu protetor, teu chefe, e soberano.”
À primeira vista, Shakespeare parece reforçar a figura da mulher como serva no matrimônio, como se a vida conjugal estivesse fundada apenas na obediência feminina. No entanto, a estrutura cômica da peça revela uma ironia clara, quase debochada, dessa visão. A cena que antecede o discurso final de Catarina é reveladora: Petruchio, Lucêncio e Hortênsio fazem uma aposta sobre qual esposa virá ao chamado do marido, imaginando que a mais dócil se apresentará primeiro. Para surpresa de todos, Catarina, tida como indomável, é a única que obedece. As outras mulheres respondem com sarcasmo e indignação. A viúva, esposa de Lucêncio, retruca:
“Meu Deus! Nunca me deis ocasião de chorar, enquanto não me vir reduzida a um servilismo tão humilhante.” Já Bianca, voltando-se a Hortênsio, provoca: “Mais louco fostes vós apostando sobre minha obediência.”
A piada, ao fim, recai sobre os homens, e não sobre as mulheres. Eis aí uma das grandes ironias de Shakespeare. Ele embaralha os papéis e deixa entrever, ainda que de forma sutil, um olhar crítico sobre os modelos de submissão esperados das mulheres. Ao colocar personagens coadjuvantes como a viúva e Bianca em oposição ao “modelo ideal” representado por Catarina, o autor amplia o debate e mostra que há muito mais camadas sob a superfície de uma comédia. A Megera Domada não é, e jamais deveria ser, lida como uma defesa do patriarcado. E se alguns discursos nos incomodam, talvez o incômodo seja justamente o efeito desejado. Shakespeare nos convida a enxergar essas brechas irônicas, muitas vezes lançadas por personagens periféricos, que se mostram sempre atentos para desestabilizar a harmonia aparente.
Esse recurso irônico e revelador não se limita às comédias; ele se intensifica nas tragédias, onde as personagens ganham ainda mais espessura psicológica. E se mantivermos o foco na vida conjugal, encontramos um exemplo notável em Júlio César, com o discurso da esposa de Brutus, a forte e sensível Pórcia. Quando percebe que o marido anda inquieto e perturbado, prestes a se envolver no assassinato de César, ela decide confrontá-lo, não com desconfiança, mas com o peso da intimidade construída ao longo do casamento. O que Pórcia diz é ao mesmo tempo um apelo amoroso e um grito por igualdade conjugal:
“Não, meu Brutus, alguma coisa te preocupa e eu, pelo direito e posição que me cabem, deveria saber. E de joelhos eu te imploro, em nome da beleza que um dia elogiaste e, pelos votos de amor e o grande voto que nos incorporou e nos uniu, que contes para mim (pois somos um, sou a tua metade) o que é que te preocupa, que os homens foram os que te procuraram, pois aqui estiveram seis ou sete, escondendo seus rostos pela noite.”
Entre tantas figuras femininas marcantes criadas por Shakespeare, há uma que, particularmente, me conquistou: Desdêmona, a trágica heroína de Otelo. Dentro do universo sombrio dessa peça, Desdêmona brilha como uma estrela serena, exemplo quase ideal de integridade, coragem e amor incondicional. É o que o crítico A.C. Bradley chamou de "feminino arquetípico", tal a harmonia com que Shakespeare compôs sua personagem. Ela é doce e delicada, mas também firme e consciente. Desde o início da trama, demonstra uma força de caráter rara, como quando enfrenta seu pai, o senador Brabâncio:
“Meu nobre pai, percebo aqui um duplo dever. A vós, devo a vida e a educação, e minha vida e minha educação me ensinam, igualmente, que devo respeitar-vos. Sois meu senhor segundo o dever. Até aqui, fui vossa filha. Mas, aqui está meu marido e a mesma obediência que vos mostrou minha mãe, preferindo-vos ao próprio pai, reconheço e declaro devê-la ao mouro, meu senhor.”
Desdêmona era ardorosa na coragem, radiante na beleza e pura de coração. Só mergulhando na leitura da peça é que se pode compreender a grandeza espiritual dessa mulher, cuja autenticidade é tão encantadora quanto trágica. Ainda que muitas vezes prática e serena, entrega-se por inteiro à paixão que sente por Otelo, um amor que, paradoxalmente, será também sua perdição. Mas mesmo nesse abandono amoroso, sua lucidez jamais se apaga. Em um de seus momentos mais belos, declara:
“Meu coração submeteu-se mesmo à verdadeira qualidade de meu amo e senhor. Enxerguei a face de meu marido na mente de Otelo e à sua honradez e talentosa coragem consagrei minha alma e meu destino.”
E é justamente no limiar da tragédia que outra mulher se destaca em Otelo: Emília, coadjuvante de fala firme e de alma incandescente. Enquanto o drama de Desdêmona se aproxima de seu desfecho doloroso, que os leitores certamente já conhecem, é Emília quem assume, por instantes, o centro da cena. Em um monólogo poderoso, ela faz uma defesa surpreendente da liberdade e da dignidade feminina, antecipando, com séculos de antecedência, reflexões que só viriam a ganhar espaço nas lutas modernas por igualdade de gênero. Emília diz:
“Mas estou convicta de que os maridos é que são culpados da queda das esposas. Logo, afrouxam de seus deveres, em regaço estranho derramam nossos bens, ou então explodem em ciúme impertinente, ou nos impõem peias de todo gênero, ou nos batem, fazendo pouco de quanto antes éramos. Ora, nós temos fel; e ainda que boas, poderemos vingar-nos. Os maridos devem se convencer de que as esposas têm sentidos como eles: vêem e cheiram, distinguir sabem o que é azedo e doce, tão bem como os maridos. Que é que fazem todos eles, trocando-nos por outra? Será que é diversão? Penso que sim. Haverá nisso amor? É bem possível. Será a fraqueza que erra tanto neles? Justamente. Ora bem. E nós, acaso não temos afeições, prazer não temos para os divertimentos, ou fraqueza, tal como os homens? Eles que nos tratem, portanto, bem, e saibam que é com eles que aprendemos também a zombar deles.”
Entre tantas figuras femininas criadas por Shakespeare, há também espaço para uma personagem real, que não apenas habitava seu tempo, mas o governava com brilho: a rainha Elisabete I. Venerada pelo povo, símbolo da estabilidade e do esplendor da Inglaterra elisabetana, era inevitável que sua presença simbólica fosse eternizada nas peças históricas do dramaturgo. Em Henrique VIII, na cena do batizado da futura rainha, Shakespeare presta-lhe não só uma homenagem, mas celebra aquela que personificava o auge da monarquia inglesa. Ao anunciar que a menina se chamará "Elisabete", o rei abre espaço para um comovente discurso do arcebispo da Cantuária, que antevê as virtudes da soberana:
“Esta real criança – e que sempre o céu vele por ela – ainda que no berço, já promete mil e mais mil bênçãos para a nossa terra.”
“A verdade será o seu sustento; celestes pensamentos, conselheiros para sempre.”
“E ela viverá, para a grandeza da Inglaterra, até avançada idade (...). Ainda virgem, como um lírio imaculado, voltará à terra e o mundo inteiro sentirá sua falta.”
Essa visão transcendental de Elisabete revela muito sobre Shakespeare. Um artista que compreendia como poucos a natureza do poder, a condição humana em suas múltiplas camadas e a complexidade da alma humana. Ao longo de sua obra, jamais relegou as mulheres a um segundo plano. Suas metáforas, seus jogos de linguagem e seus diálogos, aparentemente despretensiosos, continuam inigualáveis na arte ocidental. E nesse vasto espelho da condição humana, as personagens shakespearianas permanecem como grandes referências para compreender o feminino em sua mais plena expressão.

