As bruxarias de um homem bem conhecido

"Sua escrita, longe de oferecer respostas fáceis, convida à reflexão constante, permitindo múltiplas interpretações a cada leitura. É essa riqueza interpretativa que torna sua obra tão duradoura: Machado é um espelho para o leitor, desafiando-nos a enxergar, por meio de suas personagens e enredos, as complexidades do humano."

ARTIGOS

George Lucas Casagrande

5/2/20257 min read

Machado de Assis, uma lenda da literatura brasileira. A joia rara da nossa cultura, o maior nome das letras nacionais, reverenciado por todos que se deparam com sua obra ou apenas escutam seu nome. No entanto, persiste a sensação de que, com o passar do tempo, a obra de Machado de Assis é menos lida do que deveria entre os próprios brasileiros. Quantos de vocês, leitores, falam sobre Machado entre amigos? Qual foi a última vez que leu uma obra desse autor do século XIX, que recebeu a alcunha de Bruxo do Cosme Velho? Entre os adultos, é comum ouvir que leram apenas trechos de Machado de Assis durante o ensino médio, quase sempre com o objetivo pragmático de enfrentar vestibulares. Já entre os jovens de hoje, prevalece a sensação de que o autor é difícil, inacessível, ou simplesmente distante de sua realidade.

Recentemente, houve um fôlego inesperado: foi preciso que uma americana no TikTok falasse sobre a obra de Machado para que seu nome voltasse a ganhar destaque entre os usuários da rede. Seria um bom presságio, ou mais um sinal da nossa anestesia intelectual?

Em que instante Machado de Assis deixou de despertar, entre nós, o entusiasmo que sempre mereceu? Seja por uma ideia equivocada de que seus textos são inacessíveis, seja pelo abismo que ainda separa a escola da leitura como experiência prazerosa, o fato é que Machado de Assis permanece mais citado do que realmente lido. Talvez resida aí um traço do nosso positivismo tardio, da visão utilitária e imediatista que tantas vezes norteia o imaginário brasileiro: se não serve a um fim prático, para que serve? Mas Machado, com sua inteligência cortante e olhar afiado sobre o humano, não é autor para respostas fáceis, é para inquietar, para permanecer ecoando. E é exatamente por isso que merece ocupar um lugar mais vivo, mais íntimo, mais presente em nossa formação cultural. Ao revisitarmos suas obras, percebemos que elas abordam questões que ainda ecoam na sociedade, um possível elo para que novos leitores despertem para a grandeza e a universalidade de Machado de Assis.

Os temas abordados por Machado de Assis ganham novas camadas de sentido à luz do presente, a proeza dos gênios que atravessam os séculos sem perder a relevância. Como lembra T.S. Eliot:

“Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu significado completo isolado. Seu significado, sua apreciação, é função de sua relação com os poetas e artistas mortos. [...] O passado deve ser alterado pelo presente tanto quanto o presente é moldado pelo passado.”

Narrativas contemporâneas que arrebatam o público jovem frequentemente tocam em temas sensíveis e profundos, por que, então, não aproximá-las de nossos clássicos? As relações marcadas por dominação, orgulho e silêncio, tão presentes em Dom Casmurro e Helena, encontram ecos evidentes nas obras de autoras como Colleen Hoover, que também desnuda as fragilidades humanas e os abusos muitas vezes camuflados de afeto. Machado já dizia tudo, só que com outra roupa, outro tempo, outra linguagem. Será que falta mesmo identificação... ou apenas um novo modo de apresentar o que sempre esteve lá?

O cineasta contemporâneo Woody Allen já conhecia Machado de Assis muito antes de ele voltar aos holofotes pelo Tik Tok. Admirador confesso do autor, Allen frequentemente menciona a influência machadiana em sua obra. Ao comentar a sutileza de sua escrita, e sua devoção por Memórias Póstumas de Brás Cubas, não hesitou em afirmar:

“Ele era muito espirituoso, divertido, cínico e não sentimental. Era tudo o que você gostaria em um escritor cômico.”

Machado de Assis, mestre da ironia, transformou essa ferramenta em uma arma letal contra a hipocrisia social e as contradições humanas. Não é apenas Memórias Póstumas de Brás Cubas que parece influenciar Woody Allen. Contos como A Cartomante e A Igreja do Diabo também dialogam com sua estética: a dissimulação se transforma em arte refinada, e os personagens se perdem entre o que pensam e o que realmente fazem. Esse brilhantismo encontra ressonância no humor sofisticado de Allen, que, assim como Machado, utiliza ironia e diálogos sutis para desnudar as fragilidades humanas. Filmes como Match Point e Annie Hall transitam entre o cômico e o trágico, tocando nas mesmas zonas de ambiguidade que o mestre brasileiro explorava com tanta maestria. Seria coincidência, ou o eco inevitável de quem bebeu ainda mais da mesma fonte?

E, ainda no universo da sétima arte, o genial Anatomia de uma Queda (2023) nos arrebata da mesma forma que Dom Casmurro faz: mantendo o espectador aprisionado a uma dúvida essencial e imbatível. O que, afinal, é a verdade? Não seria essa a questão que Machado de Assis já tão brilhantemente nos propunha? Anatomia de uma Queda dialoga com essa ambiguidade ao construir uma trama onde a verdade dos eventos se dissolve em incertezas, desafiando o espectador a questionar suas próprias percepções. Como em Machado, o filme nos conduz por um labirinto de emoções, onde o que parece ser não é, e o que é, talvez, nunca se revele de fato. Mas Machado é superior. Não teve o recurso da imagem visual para criar essa pulga atrás da orelha do leitor. Foi puro jogo de palavras. Foi puro malabarismo sintático, ironia elegante, pontuação pensada como quem coloca armadilhas. Ele não precisou de closes dramáticos, nem trilha triste. Sua arma foi a linguagem, e com ela ele construiu labirintos mentais, ciladas morais, espelhos desconfortáveis. Se Shakespeare teve o teatro, se o cinema tem a lente, Machado teve a vírgula. Foi apenas com ela que escreveu o Brasil como poucos ousaram fazer.

Problemas atuais. Fatos indigestos. Sociedades doentes. Velhos problemas. Machado de Assis também é um remédio, amargo e necessário, que denuncia o racismo em Pai contra Mãe. Como não lembrar de Cândido Neves, que, ao escolher entregar uma escravizada fugitiva para garantir sua sobrevivência, simboliza a desumanização promovida por um sistema de exploração racial? O paralelo com a atualidade é inevitável: as desigualdades raciais no Brasil contemporâneo ainda são marcadas por profundas heranças escravocratas. Machado de Assis, lúcido e incômodo, segue sendo atemporal. É indispensável.

Em suma, acho que já fui convincente. Poderia ainda falar sobre o preconceito de classe em Helena e no filme Parasita, ou dizer que Machado, nosso Shakespeare tropical, criou o Otelo brasileiro, com a sutileza corrosiva de Dom Casmurro. Poderia rir, com certo amargor, das tiranias patéticas de ontem e de hoje, expostas com ironia em O Alienista. Poderia seguir listando tantas e tantas obras, tantos e tantos temas sobre os quais Machado de Assis se debruçou com olhos agudos e mão firme. Mas talvez seja melhor apenas repetir: Machado de Assis deve ser mais lido.

Harold Bloom, um dos críticos literários mais influentes do século XX, não hesitou em incluir Machado de Assis em seu seleto cânone ocidental, um gesto que, por si só, já revela a dimensão universal de sua obra. Mais que isso: Bloom o definiu como 'o maior escritor negro do hemisfério ocidental'. O que mais seria necessário para reconhecermos, nós, brasileiros, a grandiosidade de Machado? Quando o olhar estrangeiro já o consagra entre os imortais, por que ainda hesitamos em celebrá-lo com o entusiasmo que merece?

Em outra de suas faces, a pessoal, Machado de Assis também era envolto em mistério. De perfil discreto e reservado, construiu uma trajetória marcada por adversidades, pobreza e preconceito racial, fatores que, longe de diminuí-lo, apenas ampliam a grandiosidade de sua conquista intelectual. Quanto mais conhecemos sua história, mais impressiona o alcance de sua genialidade. Não é ainda mais impressionante que tamanha sofisticação literária tenha brotado de um contexto tão adverso? Sua vida, assim como sua obra, é uma lição silenciosa de resistência e genialidade. Machado de Assis é um acontecimento extraordinário para o Brasil.

Sua escrita, longe de oferecer respostas fáceis, convida à reflexão constante, permitindo múltiplas interpretações a cada leitura. É essa riqueza interpretativa que torna sua obra tão duradoura: Machado é um espelho para o leitor, desafiando-nos a enxergar, por meio de suas personagens e enredos, as complexidades do humano. Sua maestria no uso da ironia, seu domínio da psicologia e sua precisão estilística colocam-no entre os grandes artistas da história do Brasil, não apenas da literatura. É raro encontrar, em qualquer tradição literária, um autor que una tamanha erudição com tamanha sensibilidade para os dramas cotidianos, e Machado o fez de forma silenciosa, porém arrebatadora.

Diante de tamanha grandeza literária e humana, é urgente que Machado de Assis volte a ser lido com a intensidade que merece. Não como um autor distante, de páginas empoeiradas e frases inacessíveis, mas como aquilo que de fato é: um escritor popular, que compreendeu como poucos as dores e contradições do povo brasileiro. Sua literatura pulsa com as inquietações de todas as épocas, fala de sentimentos universais e lança luz sobre realidades que ainda nos cercam. Ler Machado de Assis é um ato de encontro, com a história do Brasil, com a linguagem em seu mais alto grau de refinamento e, sobretudo, com nós mesmos. Que suas obras sejam retomadas não apenas nas salas de aula, mas também nas mãos de leitores que buscam compreender o mundo por meio da arte. Você está pronto para permitir que as palavras do bruxo revelem mais sobre você e sobre a sociedade em que vive?

Machado de Assis e Woody Allen

O filme "Anatomia de uma queda"

O crítico literário Harold Bloom

"É assim que acaba" - Collen Hoover