A herança africana no Brasil
"Quando desenvolvi, junto a um amigo e professor de sociologia, um trabalho sobre consciência negra em que ele fotografou os alunos da escola onde trabalhávamos, fui tocado por uma percepção mais sensível da beleza e da força do povo negro. Havia nos rostos, nos gestos e nas expressões algo peculiar e especial, e isso fez eu me orgulhar ainda mais de ser brasileiro."
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
A herança africana no Brasil é profunda e marcante e, por isso, não surpreende que tenha sido escolhida como tema da redação do ENEM de 2023. Desde então, senti vontade de escrever algo sobre o assunto, que é tão rico e necessário. Para os mais atentos, é facil, e sempre importante lembrar que essa herança constitui um alicerce da cultura brasileira, presente na linguagem, na culinária, na religião, na música e em tantas outras dimensões visíveis no nosso dia a dia. Desde que me interessei pelo Brasil do século XIX e passei a pesquisar sobre o movimento abolicionista, passei a apreciá-lo cada vez mais, pois acho tudo que o cerca muito intrigante. Embasado por ideais de liberdade e justiça, esse movimento foi responsável por questionar as bases morais da escravidão e por pavimentar, ainda que lentamente, o caminho para o reconhecimento da contribuição negra na formação nacional. A abolição da escravatura, entretanto, não representou o fim das desigualdades, mas deu início a um novo capítulo na luta por direitos e pela valorização da identidade afro-brasileira, e é preciso a valorizar e reconhecer mais o papel desse movimento.
Os intelectuais do movimento abolicionista brasileiro foram figuras notáveis, cuja inteligência refinada e sagacidade política impressionam até hoje. Nomes como Luiz Gama, José do Patrocínio e André Rebouças não apenas desafiaram a escravidão, mas também construíram uma base para o pensamento social crítico no Brasil. A força da herança africana no Brasil, no entanto, não se restringe ao campo político ou jurídico: ela aparece de forma ainda mais rica na literatura, nas artes plásticas, na música e em outras expressões culturais. Escritores como Machado de Assis (veja meu artigo sobre o escritor aqui) e artistas como Heitor dos Prazeres, esse homem carioca e tão peculiar que retratava com cor e emoção a vida urbana e popular do Rio de Janeiro, mostram como a estética negra moldou a identidade visual e sonora do país. Heitor, que também foi sambista, encontrou nas ruas, nos morros e nos carnavais sua paleta mais autêntica, dando vida a um Brasil plural e profundo.
Heitor dos Prazeres (1898–1966) foi um verdadeiro expoente da arte brasileira, cuja trajetória revela a profundidade da herança africana no país. Compositor, cantor, pintor, marceneiro, sapateiro e alfaiate, ele transitava entre mundos populares e artísticos com desenvoltura, além de ter sido um dos fundadores das emblemáticas escolas de samba Portela e Mangueira. Na pintura, me veem à cabeça obras como Moenda, Festa de São João e Samba na Praça, obras as quais retratou cores vivas e traços expressivos a vida cotidiana das comunidades negras e suburbanas do Rio de Janeiro. Em Moenda, vemos trabalhadores rurais na cana; em Festa de São João, a celebração das tão amada festa junina brasileira; e em Samba na Praça, a música e a dança como formas de expressão. Ao retratar tudo com tanto afeto, Heitor dos Prazeres eternizou uma parte essencial da alma carioca e da identidade nacional.
E se nas artes plásticas a presença africana é inegável, ela também se revela na moda, que ressignifica cores, tecidos e estilos como símbolos de ancestralidade. A moda como herança africana também é intrigante e se expressa principalmente em turbantes e tecidos estampados que transformam o corpo em memória viva. Recentemente, cheguei a me interessar por um curso da Pinacoteca sobre o tema, mas não consegui realizá-lo. O curso mostrava como os tecidos tradicionais africanos não são apenas expressões estéticas, mas estão profundamente ligados a contextos culturais e econômicos: expressam identidade, espiritualidade e status e, quando ressignificados pela diáspora, tornam-se também símbolos de reconexão com as raízes africanas.
No Brasil, a herança africana se juntou a outras influências e moldou o nosso povo diverso. Essa mistura criou algo que não se vê em nenhum outro lugar do mundo: uma nação peculiar, que deve muito aos muitos povos que vieram da África. Quando desenvolvi, junto a um amigo e professor de sociologia, um trabalho sobre consciência negra em que ele fotografou os alunos da escola onde trabalhávamos, fui tocado por uma percepção mais sensível da beleza e da força do povo negro. Havia nos rostos, nos gestos e nas expressões algo peculiar e especial, e isso fez eu me orgulhar ainda mais de ser brasileiro.
Reconhecer a herança africana no Brasil é reconhecer a própria essência da nossa formação social e cultural. Celebrá-la, portanto, é um exercício de entendimento, respeito e pertencimento. Há muito caminho a percorrer, mas tenho certeza de que isso nos fortalece como país, um país que ainda está aprendendo a olhar para sua história com mais sensibilidade e consciência.



