A falência do ensino público ou: contra a tecnologização ensandecida
“É legítimo, e parece óbvio, que nossa educação precisa de mudanças, mas achar que essa obsessão tecnológica é o único e melhor caminho, está longe de ser verdade. Precisamos caminhar muitas quadras ainda para aceitar qualquer coisa nova que surja por aí.”
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
Quando recordo daquela Londres cinzenta descrita em 1984, logo encontro muitos paralelos com a educação pública hoje, pois certamente são cenários muito parecidos. Em ambos, as parafernalhas tecnológicas compõem uma atmosfera cada vez mais sofisticada de controle, mas que contradiz uma vivência carente, que se sustenta pelo básico do básico e olhe lá. É uma sociedade aparentemente avançada em seus aparatos tecnológicos, mas moralmente falida, que vive sob mentiras e fingimentos meticulosamente administrados.
No último domingo, vivi mais um capítulo dessa contradição distópica. Saí para realizar a tal da famigerada PND (Prova Nacional Docente, nome robusto!). Cheguei a uma escola da zona norte, onde havia mais fiscais de controle do que professores realizando a avaliação. Comecei o longo exame e, como era de se esperar, nada me surpreendeu: o conteúdo girava em torno das tecnologias digitais, dos multiletramentos, do mundo contemporâneo e de suas infinitas “práticas inovadoras” que visam despertar o interesse dos alunos na escola. As questões de Língua Portuguesa, em especial, exaltavam redes sociais, podcasts, vídeos e projetos interativos, as mesmas tendências que entopem os cursos livres e as pós-graduações docentes neste século. Mas, justiça seja feita: para compensar tanta modernidade, a redação abordava o idadismo, o mais novo conceito acadêmico que podemos traduzir simplesmente como o preconceito por conta da idade, geralmente mais associado a idosos.
Até aí, tudo bem. Nada que espante os professores antenados nas novas tendências educacionais no Brasil. Afinal, quem vive o cotidiano escolar sabe que o mundo da educação hoje é bombardeado por uma verdadeira febre tecnológica, uma verdadeira obsessão apresentada como panaceia capaz de resolver todos os problemas e tornar, enfim, a escola “mais interessante” para todos, alinhada aos ditames da “atualidade”. Some-se isso às criticas de sociólogos e pedagogos a modelos tradicionais, que foi facilmente digerida pela burocracia pública escolar, sempre suscetível a modismos, temos a receita perfeita de uma educação que visa se modernizar e não ser mais “retrógrada” ou “atrasada”. Mais curiosa ainda é a recente proibição dos celulares em sala de aula, todavia, isso não é assunto para agora. Seguimos.
Como de costume, o Brasil nunca decepciona em sua capacidade de bater cabeça. Assim que entrei na sala, percebi que a minha carteira estava sem cadeira, problema rapidamente resolvido, é verdade. Durante a prova, uma pausa para o banheiro revelou uma visitante ilustre: uma baratinha, já de barriga para cima, sinal de que ao menos a dedetização fora recente. O sabonete, esse item já tão raro em escolas públicas estava, para minha surpresa, novamente em falta. Na saída, antes de deixar o local, o fiscal me fez retornar para passar pelo detector de metais, o aparelho para garantir a lisura do processo. A organização é importante! Até então, nada na minha história espanta o leitor atento às delícias e contrastes de nossa sociedade. A educação pública, assim como tantas outras instituições brasileiras, é um palco de contradições mesmo, e sei que já estamos acostumados com tudo isso.
Mas a bagunça nunca nos cansa de nos surpreender. Mal cheguei em casa e as notícias começaram a pipocar: em algumas escolas, inclusive próximas à minha região, o espetáculo foi ainda mais caótico, falta de carteiras, provas realizadas nas mesas da merenda, gabaritos divulgados antes da hora, celulares a todo canto. Um verdadeiro suco de Brasil. Resultado: é provável que a prova seja cancelada e eu tenha perdido meu dinheiro, pois dificilmente realizarei uma nova prova. Contudo, o episódio narrado até aqui é para mostrar algo muito mais profundo, que o leitor atento já deve ter percebido.
A escola jamais vai competir com o avanço tecnológico, e nem deve fazer isso, mas daí achar que uma casa começa a ser construída pelo telhado ou, pior, usar a inclusão tecnológica como propaganda para dizer que nossa educação progrediu, é simplesmente jogar toda a sujeira para debaixo do tapete. Infelizmente, muitas vezes a própria sociedade civil acaba embarcando nessa propaganda, achando que tudo caminha bem. Mas o fato é que seguimos tendo uma educação perdida, que não consegue entregar o básico, que tem uma infraestrutura caindo aos pedaços, uma péssima organização, e sem a ínfima perspectiva de melhora.
Mergulhada em uma obsessão por metodologias, fica cômodo achar que basta enfiar uma bugiganga de aparelhos em sala de aula, sobrecarregar professores por resultados e esperar que desse modo nosso ensino progrida, como num passe de mágica. E o mais triste é ver que essa obsessão tomou conta de toda a atmosfera educacional. É legítimo, e parece óbvio, que nossa educação precisa de mudanças, mas achar que essa obsessão tecnológica é o único e melhor caminho, está longe de ser verdade. Precisamos caminhar muitas quadras ainda para aceitar qualquer coisa nova que surja por aí.
É como disse Millôr Fernandes: “O Brasil é o único país em que os ratos conseguem botar a culpa no queijo”. No final, não temos alunos mais interessados e nem inclusão tecnológica decente. Vamos, como sempre, levando tudo com a barriga. Salve-se quem puder.


