A cidade dos livros
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ARTIGOS
George Lucas Casagrande
Qualquer banalidade se transforma numa hecatombe quando estou com enxaqueca. O cérebro parece dar um nó, e eu fico vagando pela casa com o semblante da derrota, segurando uma toalha molhada na cabeça. Foi exatamente nesse estado que assisti a Les Triplettes de Belleville (2003). A animação captura com maestria os trejeitos caricatos do ser humano, mesmo nos seus piores momentos.
No entanto, a enxaqueca me deixa impotente para qualquer tentativa de estudo. Abandonei um pesado livro de José Guilherme Merquior e resolvi me dedicar a uma leitura mais leve. Não me arrependi nem um pouco, e vou explicar por quê. Partindo do que Theodore Dalrymple comenta sobre Milkmaid, de Johannes Vermeer, podemos começar:
“O quão belo pode ser um singelo fio de leite, despejado de uma jarra, o quão supremamente elegante é sua trajetória, e o quão sutil é o jogo de luz sobre ela.”
Dalrymple não está errado. Vermeer extrai do singelo, do sutil, um encanto e uma beleza atemporais. É possível traçar uma analogia semelhante quando falamos do propósito da crônica literária. Com ela, o minúsculo se torna grandioso, seja um fato, um objeto ou um acontecimento. O cotidiano simples e comum é engrandecido pela perspectiva do escritor. E, se há alguém que domina essa arte com maestria, esse alguém é J.P. Coutinho.
As palavras refinadas do português, ao dar suas pitadas sobre arte, literatura e política em Av. Paulista (conjunto de textos publicados na Folha entre 2005 e 2008), são notáveis. O livro de crônicas é um verdadeiro diamante para o cérebro, e me tirou da lama nos dias difíceis. Certos livros têm o dom de remediar as aflições; se qualquer banalidade vira uma tragédia sob o efeito da enxaqueca, essas obras logo a tornam pequena novamente.
O escritor é sofisticado, divertido e bem informado como poucos. O “português de Portugal” empresta seu charme, então prepare-se para muitos “factos” e “actos” na ortografia. Com João, autores como Art Buchwald, Jeffrey Bernard e Nelson Rodrigues ganham destaque especial. Ele é um cronista admirador de cronistas. Mas o que mais me encantou foi quando Coutinho narra sua visita a Hay-on-Wye, um lugar que eu sequer conhecia.
Guardadas as proporções, Hay-on-Wye guarda semelhanças com a forma como adquiri meu próprio Av. Paulista (falarei sobre isso mais adiante). Hay-on-Wye é a cidade-paraíso dos livros. Sua origem remonta a Richard Booth, que comprou o castelo em ruínas da cidade e o transformou numa biblioteca a céu aberto. O “lunático Booth”, nas palavras de Coutinho, encheu o castelo com tantos livros que não sobraram prateleiras. Resultado: os livros foram empilhados no jardim, onde as pessoas podiam se deliciar com a variedade. Hoje, a cidade é turística, repleta de alfarrabistas, diferente do modelo original, mas não perdeu sua fama de paraíso dos livros. Lá, obras raríssimas são vendidas por preços quase simbólicos.
Mas Hay-on-Wye não é exceção quando o assunto é o prazer proporcionado pelos livros. Qualquer lugar abarrotado deles é um êxtase para um leitor regular. Seguindo essa linha, livros e felicidade, quero compartilhar algo curioso que me aconteceu há cerca de um mês, quando adquiri meu próprio Av. Paulista. Depois de uma estonteante caminhada sob o sol, deparei-me com uma espécie de fábrica gigante. À distância, imaginei ser uma papelaria, mas, chegando mais perto, tive uma deliciosa surpresa: um ponto de estoque de livros, que atende a várias editoras. Explorei cada prateleira com o afinco de um investigador. Se alguém estranho tivesse me visto, teria pensado que eu era um detetive em missão. O resultado? Comprei seis livros por quarenta reais.
Entre eles, uma biografia de José Saramago, o próprio Av. Paulista, e o clássico As Paixões Intelectuais, de Elisabeth Badinter. Aquele dia inusitado me proporcionou uma sensação semelhante à que João experimentou em Hay-on-Wye. Pouco importa se é Londres ou qualquer outro lugar, o prazer de estar rodeado por livros é, guardadas as proporções, quase o mesmo. E se eles são de graça ou quase, o momento se torna ainda mais delicioso. Até então, eu não conhecia Hay-on-Wye, até João me apresentar.
Hoje sinto que desfrutei de uma “pequena Hay-on-Wye”, ou melhor, da “minha Hay-on-Wye”. Ela fica na pacata Freguesia do Ó. Não tem livros raros, nem castelo, apenas uma igreja famosa. Rio? Só em dias de chuva forte. Mas tem livros. E livros bastam. Meu “momento Hay-on-Wye” não me trouxe apenas páginas impressas, mas pedaços do universo. Porque é isso que esse português, cheio de vigor intelectual, consegue fazer com seus textos. Se você ler J.P. Coutinho, garanto que não vai se arrepender.

