A arte como redenção e transformação do indivíduo
"Ora, qual mensagem pode ser mais poderosa do que esta, que nos lembra que é justamente nos braços da arte que nos sentimos mais humanos? É nela que encontramos a possibilidade de dialogar com o universal, de abraçar os mistérios que nos atravessam e que tantas vezes nos fazem sofrer e questionar a própria vida."
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
Minha saga pelo cinema segue firme em 2025. Neste ano, mesmo em meio ao cansaço da docência e aos compromissos da vida, consegui assistir ao 53º filme. Sim, estou anotando tudo o que assisto, justamente com o intuito de, posteriormente, lembrar das obras com mais precisão. E seguindo esse costume e recorrendo a essa lista, repleta de ótimos títulos, resolvi falar de dois filmes que chamaram bastante a minha atenção. À primeira vista, eles parecem não compartilhar nada em comum, mas acabam se encontrando em um argumento essencial: a força da arte como elemento de transformação. Esse é o elo entre o drama holandês Além do Tempo (2022) e o recente Sing Sing (2024), produção americana indicada a três categorias no último Oscar. Ambos, à sua maneira, mostram como a arte pode ser o mais poderoso remédio para lidar com o sofrimento da existência e abrir novas possibilidades para o nosso viver.
Descobri Além do Tempo (Zee van tijd) quase por acaso, naquelas andanças que fazemos pelos streamings em dias em que não temos vontade de assistir ao que está em nossa lista. O filme é de uma sensibilidade rara, uma daquelas obras que permanecem na mente por muito tempo. A narrativa nos conduz à década de 70, quando acompanhamos um jovem casal apaixonado, Lucas (Reinout Scholten van Aschat) e Johanna (Sallie Harmsen) que, juntos com o seu filho, o pequeno Kai (River Oosterink), vivem um idílio em meio à natureza. Uma vida perfeita, cheia de amor e sonhos. Em tomadas que lembram Terrence Malick, somos levados ao ambiente natural do Atlântico, com o sol e o mar banhando uma vida de liberdade e inocência. Mas, de repente, uma tragédia, sem culpados, sem respostas. O que poderia ser mais devastador para dois jovens amantes do que a perda inesperada do filho em um acidente de barco? Como podemos imaginar, o que se segue na vida do casal é uma verdadeira hecatombe emocional. Eles se separam, cada um tentando lidar com a dor do luto a seu modo. Trinta e cinco anos depois, completamente marcados pela tragédia, o casal se reencontra. O motivo desse reencontro? Lucas, agora diretor de teatro, decide transformar o luto em criação e ensaia uma peça, mais especificamente, uma ópera simbólica sobre a morte do filho, como se, naquele gesto, buscasse o derradeiro e catártico adeus ao pequeno.
O objetivo de Lucas, sem ter podido se despedir do pequeno Kai, era encontrar um modo de continuar vivendo. E por que não pela arte? O filme, de teor emocional muito forte, traz a história de uma tragédia que, 35 anos depois, é ressignificada, ainda que simbolicamente, por meio da criação artística. Nesse tributo, encenado em forma de peça, Lucas e Johanna, após tanto tempo de luto e dor, finalmente se despedem de Kai e encontram uma maneira menos dolorosa de seguir adiante. O momento da peça teatral representa a cena mais bonita do filme, o ápice da obra, que nos envolve e nos faz participar do luto e da transfiguração da trama.
Enquanto em Além do Tempo a arte ressignifica uma perda íntima e familiar, em Sing Sing ela se infiltra nos espaços hostis e sufocantes de uma penitenciária norte-americana, a famosa cadeia chamada Sing Sing. O filme, baseado em fatos reais, retrata a vida de alguns presidiários que participam de um grupo de teatro idealizado pelo detento Divine G, interpretado por Colman Domingo. Feridas, ressentimentos e rivalidades, que a qualquer instante parecem prestes a explodir nos ensaios, acabam cedendo lugar à arte do teatro, que surge como um sopro de humanidade em meio ao ambiente hostil. Cada personagem encarnado no palco abre uma fresta para que esses homens, tantas vezes reduzidos a números e estigmas, possam se reconhecer novamente como sujeitos, como humanos. O teatro não elimina a dureza da rotina carcerária, mas a atravessa, transformando-a. As histórias de vida se entrelaçam com dramas e monólogos, e o passado encontra refúgio na criação coletiva. Por meio das dores e dilemas de Hamlet ou Rei Lear, ou até de personagens satíricos, os detentos se sentem parte do grande e universal diálogo da humanidade. É através do palco, que cura e redime, que eles, talvez a classe mais desprezada pela sociedade, conseguem exteriorizar suas dores e ressentimentos, mesmo que de forma alegórica.
Ora, qual mensagem pode ser mais poderosa do que esta, que nos lembra que é justamente nos braços da arte que nos sentimos mais humanos? É nela que encontramos a possibilidade de dialogar com o universal, de abraçar os mistérios que nos atravessam e que tantas vezes nos fazem sofrer e questionar a própria vida. A arte pode não eliminar a dor, como bem sabemos, mas pode transfigurá-la, mostrar-nos novas perspectivas e servir como ferramenta de redenção, de questionamento e até de vingança simbólica. É um sopro de esperança diante da dor e do absurdo que habitam a condição humana, independentemente do lugar em que o indivíduo esteja.
Mesmo separados social e geograficamente, Lucas e Divine G têm muito em comum. Eles sabem que enfrentar seus próprios fantasmas é necessário, embora não seja tarefa para os mais fracos, mas escolhem essa batalha de maneira incrivelmente bela. A arte, por meio de suas diferentes manifestações e linguagens, possui esse poder misterioso, o poder de nos fazer acreditar que podemos ser melhores, que podemos nos reconstruir. A arte conspira a favor da vida, e cabe a nós transformar a vida em uma experiência cheia de arte.



