A Argentina em três atos, ou melhor, três filmes
"A Argentina de Borges e Cortázar jamais perde o fôlego quando se trata de arte, e o cinema, essa forma moderna e intensa de contar histórias, é mais uma das faces brilhantes de sua produção cultural."
ARTIGOS
George Lucas Casagrande
O cinema argentino é uma verdadeira dádiva para qualquer apaixonado pela sétima arte. Que nós não apreciemos apenas os vinhos e o futebol dos hermanos, mas também saibamos aproveitar nossos vizinhos nas telas, que quase sempre nos entregam filmes cheios de charme e sensibilidade. Quem acompanha o cenário cinematográfico internacional sabe que não falo nenhuma novidade: a Argentina, há décadas, ocupa um lugar de destaque com obras que misturam crítica social, fotografia exuberante e atuações de destaque. Nesse contexto, é impossível não citar a estrela-mor do cinema argentino, Ricardo Darín, rosto de personagens inesquecíveis que atravessam gêneros e décadas.
Escolher apenas três filmes argentinos e, especificamente, três filmes com Ricardo Darín, é uma tarefa que beira o absurdo, mas resolvi encarar essa jornada. Como separar apenas três entre tantos e não cometer injustiças? Como reduzir décadas de ótimas produções e personagens complexos a uma lista, diria, egoísta e pessoal? Pois bem, mesmo diante do risco, me propus a comentar três obras que vi e que merecem uma atenção especial dos espectadores. Curiosamente, três obras que lidam com justiça-tribunal, para o deleite de leitores advogados.
Comecemos pelo clássico incontornável O Segredo dos Seus Olhos (El secreto de sus ojos, 2009), vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e verdadeiro marco do cinema argentino contemporâneo. Aqui, Ricardo Darín dá vida a Benjamín Espósito, um ex-servidor do Tribunal Penal de Buenos Aires que, ao se aposentar, decide escrever um romance. Mas que tema escolher? Espósito mergulha no passado e elege justamente o crime brutal de 1974, que jamais saiu de sua cabeça. Trata-se de um caso arquivado, cheio de perguntas e poucas respostas. Movido por um senso de justiça tardia (ou seria culpa?), ele revisita os corredores escuros da burocracia argentina e da memória, enquanto a história de amor latente com sua colega Irene Menéndez (Soledad Villamil) também é recordada. O filme entrega muito mais do que uma trama policial: é um estudo sobre o tempo, a impunidade do estado e os sentimentos encobertos. Guillermo Francella, outra figura importante do cinema argentino, dá papel a Pablo Sandoval, roubando várias cenas com sua ironia algo meio trágica. A fotografia, de encher os olhos, nos apresenta uma Argentina de contrastes, serena, quase bucólica, como pano de fundo para o drama. A trilha sonora, assinada por Federico Jusid e Emilio Kauderer dão mais um caldo a esse caldeirão de sentimentos e injustiças.
Já em Tese sobre um Homicídio (Tesis sobre un homicidio, 2013), dirigido por Hernán Goldfrid, Ricardo Darín mergulha em mais uma personagem intelectual e atormentado: Roberto Bermúdez, um prestigiado e vaidoso professor de criminologia. Ele se vê arrastado para um redemoinho de paranoia e obsessão após o assassinato brutal de uma jovem bem em frente ao auditório onde leciona. A tragédia adquire contornos pessoais quando o principal suspeito passa a ser seu aluno, o provocador e brilhante Gonzalo (Alberto Ammann). Ammann entrega uma performance fantástica e dissimulada; sua ambiguidade nos confunde a ponto de nos perguntarmos se estamos realmente diante de um assassino frio ou de um pupilo provocando o seu mestre. A relação entre os dois rapidamente ultrapassa os limites da ética acadêmica e adentra num território quase dostoievskiano, em que o crime é menos um ato e mais uma provocação filosófica. Gonzalo parece querer provar que o professor que tanto admira é incapaz de decifrar o enigma que ele mesmo construiu. Será? Quando vi o filme pela primeira vez (já assisti duas) saí indicando para meus amigos advogados, pois achei a narrativa engenhosa e inteligente, um thriller bem diferente do tradicIonal.
Por ultimo, mais um filme em que o dilema da morte nos lança questionamentos. Dirigido por Pablo Trapero, Abutres (Carancho, 2010), é mais uma obra em que Ricardo Darín interpreta Sosa, um advogado desacreditado que atua nas sombras do sistema de seguros e indenizações, buscando clientes entre vítimas de acidentes de trânsito. Tem acidente? Sosa está por lá, como um abutre, como diz o próprio título, uma figura que se alimenta das dores alheias, das tragédias urbanas. Mas até onde vai a responsabilidade moral de alguém mergulhado num sistema que já nasceu corrompido? A chegada de Luján (Martina Gusman), uma médica idealista e viciada em trabalho (e remédios), traz uma pitada de humanidade na vida do ambíguo personagem de Darín, mas também aprofunda o drama e os dilemas éticos do filme. Em meio ao caos das ruas noturnas de Buenos Aires, o filme nos lança uma pergunta incômoda: é possível agir corretamente em um mundo onde tudo já está errado? Esse território pantanoso nos obriga a olhar para aquilo que preferiríamos não ver: os mecanismos perversos que transformam tragédias em oportunidades de lucro. Nada mais atemporal, não?
A Argentina de Borges e Cortázar jamais perde o fôlego quando se trata de arte, e o cinema, essa forma moderna e intensa de contar histórias, é mais uma das faces brilhantes de sua produção cultural. Os filmes argentinos transitam com liberdade entre os gêneros e os gostos, e ainda levantam questões profundas sobre vingança, instituições falidas e a fragilidade humana diante de um mundo absurdo. O cinema argentino, junto ao decano Darín, chama o espectador para refletir sobre todos esses temas. E você, vai aceitar dançar esse tango?

